A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.
Agasalhada por um sol que afaga e protege, Inês percorre as páginas mais recentes da sua vida como quem já não precisa de metáforas ou demais eufemismos para aceitar que, desta feita, as circunstâncias parecem ter superado a sua até então insubmissa vontade.
Exilada na rudeza do molhe cúmplice de outras marés, de tão enriquecedoras mutações, a sombra projetada por uma luz que não conhece enquadramentos de conveniência sanciona a gravidade do momento: de ombros caídos e com os cotovelos ancorados nas pernas, é com o olhar firmado no infinito azul de um horizonte providencialmente sereno que se entrega à autenticidade dos sentimentos que lhe percorrem a alma.
Está cansada. Um esgotamento físico confirmado por uma exaustão anímica que há muito lhe embaraça os movimentos e até o pensamento. O zunido agreste de um vento que não conhece esquinas liberta-lhe os cabelos que se amarram a um rosto cerífico. Empedernida, é o mar que sublima o impacto deste capítulo nunca vivido. Na solidão dos seus pensamentos ondulantes, entrega-se aos perigos de um recolhimento sem destino. O leme outrora racional foi abandonado para que os ventos da emoção ditem, sem fundamento ou intenção aparentes, novos rumos onde fundeie esta desgovernada frota de sentimentos soprados por ventos contrários.
Casada há meia década com Fábio, com quem partilha a paixão por uma cozinha verde, pensada e servida para ser consumida pelas massas, desde cedo enfrentou a oposição cega e militante da sogra, a toda-poderosa Constança. Sim. Poderosa. Foi do seu porto, que nunca conheceu valias inferiores a nove dígitos, que veio o financiamento para tanto arrojo. A contragosto, que tantas vezes assinalou com laivos de praga lançada à jovem tripulação, lá disponibilizou a maquia tão reclamada pelo filho único que trata com desmesurada proximidade maternal. Na viuvez, à falta de melhor estímulo, parece ter encontrado a motivação a que se entregou com intrépida determinação missionária: ser mãe.
Desenganem-se os corações mais clementes, pois esta missão, a que se amarrou com tonto desvelo, não conhece oceanos e continentes. O jovem casal há muito que poderá comparar-se a um par de marinheiros enclausurado numa opressiva nau de guerra em tempo de abastada bonança. De que lhes vale o mundo se os limites se finam às águas que envolvem aquela embarcação sem permissão para desamarrar?
Inês nunca foi tratada pelo seu nome próprio. Inexplicavelmente entregue ao pronome (im)pessoal que a identificou como sendo “ela”, aceitou tão soez desconsideração com a sincera esperança de um dia, à custa de muita paciência e humildade, lograr impor-se pelo mérito e acerto da sua conduta. Nada disso. A realidade rapidamente se encarregou de desfazer quaisquer veleidades. “Ela” veio, entrou, mas jamais conhecerá a estima de ser “a Inês”.
Nos meses mais recentes, e a pretexto da crise que ainda não chega a todos, Constança tem espaçado cirurgicamente os seus financiamentos cuja necessidade se acentuou pela diminuição da clientela, obrigada também ela a precaver-se dos ataques de IVA e afins. Sentindo-se ainda mais crucial para a sobrevivência da atrevida empreitada de Fábio, tem aproveitado para em tudo se imiscuir. Se não é com o pessoal, é com as cortinas ou com as toalhas de mesa que só agora mereceram severos reparos. A cada dia, uma crítica quase sob a forma de condição para nova e suada “contribuição”.
Num tom que singulariza as almas pequenas, tem concentrado baterias na opção de conceber uma ementa exclusivamente à base de legumes. Tem desfiado um rosário de comentários depreciativos, entre censuras mais ou menos veladas, com destinatário certo: Inês.
À noite, nos momentos de integral cumplicidade, o casal tem comentado esta crescente intromissão da matriarca, que julgava passageira e fruto de fatores inócuos. Contudo, a pronunciada ingerência de Constança tem – sabem-no os dois – ultrapassado os limites do aceitável no tom e na forma. Ainda assim, Fábio tenta enquadrar a questão numa perspetiva mais conciliatória e desculpabilizante, mas Inês tem alertado o marido para a necessidade de se clarificarem, de uma vez por todas, papéis e intenções.
Há dias que a nora parece encarnar uma pilha de nervos. Hoje, num momento em que estaria a debater-se com a necessidade de batizar uma nova sopa acabadinha de confecionar, à base couve-lombarda, feijão encarnado, cenouras, cebolas e grão, atirou inocentemente para o chef:
- Vai chamar-se Sopa da Sogra!
Não se tendo apercebido que Constança estaria a poucos metros de si, foi com espanto que se deparou com ela mal se virou para enxaguar as mãos. Surpreendida, a jovem logo tentou justificar a sugestão, enfatizando a ausência de “maldade ou de segundas intenções”. Mal ou bem, a sogra pressentiu poder usufruir de um pretexto para algo maior pelo que disparou:
- Para mim, acabou! Foi a gota d’água! Já basta o que basta!
Sem tempo para outras palavras serem pronunciadas, bateu em retirada numa coreografia visivelmente dramatizada.
Não tendo compreendido o que se havia passado, Fábio acabaria por responsabilizar Inês por esta altercação forjada por uma mãe celibatária. Estalara o conflito e a discussão entre ambos redundou numa fuga de Inês.
De volta ao mar que aceitou a encargo de confessor mor desta mulher partida, as dúvidas parecem borbulhar com dolorosa pertinência. Afinal, o que fazer? Reatar ou romper? Que futuro para aquele restaurante fundado para promover uma alimentação… verde? Com ou sem legumes? E eles? Com ou sem Constança?
Foi num daqueles sábados que, em família, decidimos experimentar o pasmo essencial de conhecer outra terra, onde nos aguardavam prezados amigos para um almoço há muito programado. Chegados a horas, e porque a confeção do prato conhecera esquentados contratempos, optei por dar umas voltas pelo centro de tão altaneira localidade para, viabilizando ritual há muito instituído, comprar a imprensa diária. Naquela zona poluída por um chorrilho estúpido de prédios que até esmagava a linha do horizonte, negligenciado pela inexistência de espaços verdes e pela surpreendente escassez de zonas de estacionamento, deparei-me com uma situação cativou a minha atenção por resultar desde logo de uma manobra brusca perpetrada por uma assanhada carrinha funerária.
Forcei um pretexto para interromper a marcha. Lancei mão do “alhofone” para atender uma chamada muda, daquelas sem emissor, que nos salvam de situações para as quais já não temos pachorra. Fiz-me cusco. Também tenho direito. Há quem lhe chame espírito de observação.
Da viatura com grafismo assinalavelmente adequado para o serviço, denunciando arrojo empresarial q.b., saíram dois sujeitos trajados a rigor. Aberta a porta traseira, fizeram deslizar a urna que, com pujante agilidade, transportaram para a entrada do prédio. Chamaram então o elevador – luxos usuais nas construções em propriedade horizontal, que também servem para endividar brutalmente os condomínios… – procedimento que parece ter sido a causa de um imprevisto dilema. Consumadas acrobáticas tentativas, nem de esguelha o caixão cabia no elevador para resgatar o corpo, que residia num andar superior. Nos seus rostos, pareceu-me ver estampada a certeza de que afinal haverá caixões que não sobem. Nem de elevador. Cabeça fria. Profissional vivido tem sempre solução. E foi o que aconteceu, se bem que a alternativa encontrada não seja própria de um visionário multifacetado.
Os dois, certos de que naquele bloco habitacional só havia falecido um indivíduo, deixaram a urna aberta no átrio principal do prédio, bem ao lado do placard da Administração do Condomínio, onde constavam as identificações de alguns caloteiros. Enquanto subiram, outros condóminos (crianças incluídas) desceram pelas escadas, deparando-se com macabro cenário. Sem mais: um caixão aberto. Temendo porventura que as medidas do habitáculo, ostensivamente vazio, fossem compatíveis com as de alguns dos andantes, ninguém se deteve. Percebeu-se imediatamente que não tinham sido aqueles a requisitarem tão invulgar serviço. Esgotada uma quinzena de minutos, os diligentes, mas, entretanto, suados funcionários, concluem o descendente raid no elevador, agora devidamente acompanhados pelo cadáver, que souberam segurar e finalmente depositar no caixão. Envolvido num tecido, o som abafado e teso do corpo que passou a preencher a urna impressionou-me.
De volta ao carro, não rodei as chaves. Preferi-me na lucidez da solidão. Vi-me assaltado por um turbilhão ingovernável de pensamentos. Todos eles sobre a morte. Vá lá! Todos pensamos nela. Faça uma pausa. Não se deixe, por momentos, conduzir pelas minhas linhas. Reconheça. Pensa mais na morte do que racionalmente presume. Eu, por mim, desde 11 de março de 2003, sou como o outro: “Não é que tema a morte. Só espero não estar presente quando ela chegar…”
Quando, onde e como morreremos são especulações humanas naturais e até legítimas, que denunciam a inevitabilidade de que, na Vida, o que temos de mais certo é justamente a morte. A título de curiosidade, já se deu conta que, há já vários anos, viveu o dia da sua morte?! Pode ser que seja a 21 de março como a 8 de novembro ou a 29 de dezembro… Já todos o vivemos.
Por exemplo, quem, no mais íntimo da sua privacidade emocional, não desejou estar presente no seu próprio funeral?! Apreciá-lo. Fazer-se passar por alguém desconhecido mas suficientemente credível para caçar alguns comentários a respeito de si, o(a) falecido(a). Ouviríamos palavras de elogio sincero ou, simplesmente, de ocasião? Ouviríamos frases de alívio ou de severo reparo? Vislumbraríamos rostos granjeando indiferença e enfado, em razão do cumprimento de (mais) um dever social ou olhos inundados de justificada saudade? E o que conteriam os cartões acoplados aos ramos ofertados? Meras assinaturas ou merecidas homenagens? Em resumo, hoje, se um de nós morresse, haveria algo de relevante que tenhamos feito, dito ou construído que justificasse a convocação dos que nos conheceram na partilha de “tão profundo e doloroso transe”?
PS – Na hora da morte, justiça seja feita: há pessoas que ficam estranhamente sérias e honestas, ao ponto de recuperarem a memória. Daí que eu, José Manuel Alho, desde já manifeste a minha indisponibilidade para aceitar, a título de liquidação de dívida(s), cheques (traçados ou não) lançados aquando da abertura da minha urna, no momento do derradeiro adeus. Antes forreta que parvo. Dito de outra forma, para não melindrar gente urbana e mais sensível: “Eis o exemplo de um irmão que, no respeito de um ancestral, mas douto pensamento popular, nunca emprestou dinheiro para não perder um amigo”. Ou outra variante do epitáfio "A partir de hoje, não contem mais comigo."
Ainda às voltas com os preconceitos causados pela bactéria E.Coli, que no último verão matou umas boas dezenas de pessoas por essa Europa, ao ponto de ter provocado uma quebra do consumo de legumes, Adelaide só agora parece recuperar os valores de produção tidos por normais. Logra, finalmente, escoar aquelas verduras que há muito também lhe caucionam o sucesso de uma ementa que só a horta perfumada e ensoleirada, herdada da avó de Penela (Coimbra), poderia garantir.
É, pois, no seu “Solar da Terra” que prepara, com deliberado requinte, a nova ementa à base de legumes e vegetais. No rodapé do remodelado cardápio, inscreveu a garantia "Os nossos legumes nunca tiveram problemas e são de boa qualidade". Em jeito de introdução, a inovadora empresária faz uma listagem frutas, vegetais, legumes e tubérculos, maioritariamente por si cultivados naquela terra de ancestrais predicados, enfatizando as suas potencialidades para a saúde de uma clientela que sabe o que quer.
Com rigor alfabético, debita muitos dos produtos que conferem à sua oferta uma paleta singular de sabores: Abacate, Abóbora, Agrião, Aipo, Alcachofra, Alface, Alho Francês, Alho Pôrro, Ameixa, Banana, Batata, Beldroega, Beringela, Beterraba, Brócolos, Cebola, Cenoura, Chicória, Dulse, Echalote/Charlotas, Endivia, Ervilhas, Espargos, Espinafres, Favas, Feijão Verde, Figos, Hortaliças de Folhas, Hortaliças de Frutos Carnudos, Inhame, Kiwi, Laranja, Leguminosas e Vagens, Leguminosas Secas, Maçã, Manga, Marmelo, Melancia, Melão, Meloa, Milho, Morangos, Nabo e Nabiça, Nectarina, Nêspera, Pepino, Pêra, Pêssego, Pimento, Rabanete, Romã, Salmonete, Soja, Tâmara, Tomate e Uva. Tudo o que ali se divulga é quase que simultaneamente lançado no sítio da internet que aprendeu a dinamizar. Mais do que arreganho, Adelaide denuncia aquele atributo que a distingue dos seus pares e vulgarmente designado de “visão”.
Sem grandes razões para se queixar da crise que a todos vai flagelando, é no seu Solar que, todos os dias, contraria a fado por muitos esboçado. Apesar dos chamados “custos de produção” terem conhecido substancial agravamento, nem isso a convenceu a “rever em alta” o preçário que arrebatou uma preferência tão militante. No entretanto, nada escapa ao seu controle. Parece estar em todo o lado. Acompanha os trabalhos de limpeza com o mesmo desvelo que dispensa à troca de impressões com os cozinheiros sondados ainda no final do seu curso numa prestigiada escola de gastronomia e culinária. Num tom que contagia interesse e confiança, prepara a novidade para inaugurar a próxima Primavera: um “Alegro de Legumes com Lagostins”.
Definido o fornecedor da pequena lagosta, de fiabilidade incontestada, concentra esforços para selecionar os legumes requeridos para a nova criação. Escolhida a cenoura, a abóbora-menina, a beringela, o tomate, a cebola, a noz-moscada, a salsa e o invejado azeite, tudo parece agora entregue aos méritos dos poetas da cozinha.
Seguindo o seu instinto, inibidor de acomodações que sempre teve por estéreis, guarda para si o projeto de edificar uma pousada rural. Com uma racionalidade cirúrgica, elegeu como alvo os conhecedores e admiradores do meio ambiente natural. “É na natureza que reside essa vasta fonte de conhecimentos empíricos, que proporcionam agradáveis passeios ao ar livre bem como belíssimos banhos de rio e de cachoeira.” – regista no portátil, em jeito de ensaio preambular, para a candidatura que aduzirá junto das autoridades e organismos que almeja ter por parceiros.
Animada pela vocação empreendedora, sente poder valorizar a Cascata da Pedra da Ferida, cravada na freguesia do Espinhal, na ribeira da Azenha. O raro contraste das rochas duras com as rochas xistosas esculpiu o áspero declive onde nasceu aquela cascata genuinamente única, que se impõe a partir dos seus vinte e cinco metros. No momento, Adelaide tem por inevitável sensibilizar a autarquia para a melhoria dos acessos e da sinalização. Ainda assim, debate-se com as eventuais vantagens da estrada de terra batida, que poderá aliciar os mais corajosos para disputadas e desafiantes caminhadas.
Mas isso são dilemas futuros, que resolverá em estreita cumplicidade com o sábio travesseiro, companheiro sereno de outras inquietações.