Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Governo (já) enganou professores.

25.04.24 | Servido por José Manuel Alho

Print_1.jpg

No 50º aniversário do 25 de Abril, os professores portugueses acordaram no regime... de sempre, que vigora desde o início deste século, onde a mentira e a patranha, com indecente e má intenção, impõem a sua lei.

Ao contrário do garantido pelo novo Ministro da Educação, há precisamente seis (!) dias, a devolução do tempo de serviço aos professores já não ocorrerá este ano, mesmo contando com o amplo apoio e consenso de PS, Chega, BE, PCP, Livre e PAN. Um ardiloso expediente tático que permita, em sede de discussão do Orçamento de Estado para 2025, usar este assunto como escudo de político, uma vulgar arma de arremesso para, no limite e sempre à custa a dignidade da classe docente, poderem dizer "nós até queríamos resolver este assunto, mas eles não deixaram"...

Não vou agora perorar sobre as consequências destes vis ataques à ética republicana, à honestidade e à verticalidade devidas a quem exerce funções políticas. Tudo é, tudo está muito claro. As pessoas não são parvas.

print_2.jpg

Como diz o povo, na sua proverbial sabedoria, a mentira tem (mesmo) perna curta.

Para o próximo dia 3 de maio, está agendada reunião negocial com os sindicatos de professores. Mas de que vale negociar com quem diz uma coisa hoje e, passados uns míseros seis dias, diz (e decide) coisa diferente?

Há oito anos que os sindicatos de professores andam a participar, sem quaisquer ganhos, em reuniões com a tutela, validando simulacros de conversações e, com a sua presença, legitimando um longo e danoso rosário de perdas e prejuízos. Os docentes andam, há demasiado tempo, a serem comidos de cebolada.

Uma classe política que trata assim os seus professores não se dá ao respeito.

Os representantes sindicais deveriam tão-somente entrar nas instalações do Ministério, munidos dos prints destas notícias, para confrontar o titular da pasta com esta quebra de confiança e, obviamente, abandonar a sala. Nestes termos, está ferida de morte a confiança mínima e indispensável ao estabelecimento de qualquer diálogo. Aos sindicatos, exige-se que não participem em palhaçadas.

Há gente a quem interessa estar à mesa com os professores só para poder dizer que os ouviu. Nada mais. E é por isso já não há pachorra para lutas fofinhas.

José Manuel Alho

Manifesto em defesa da Escola Pública, do Ensino e dos seus Profissionais.

24.04.24 | Servido por José Manuel Alho

logo_apede_hd-copia-1.jpeg

Retirado daqui

«Após duas décadas de erosão contínua, orquestrada e intencional, da autoridade e do estatuto socioprofissional dos professores, assente na degradação das carreiras e salários, precariedade laboral e falta de respeito pelos vínculos familiares e afetivos, desautorização pedagógica, indisciplina crescente, burocracia infernal, modelo de avaliação injusto e opaco, gestão escolar unipessoal e autocrática, crescente facilitismo e pressão para o sucesso administrativo, sobrecarga horária, múltiplas tarefas e funções burocráticas, enfim, um ataque ao prestígio e à dignidade profissional docente, que levou muitos milhares a abandonar o ensino, deixando muitos dos que ficaram no sistema em situações intoleráveis de exaustão, “burnout” e desânimo, parece-nos imperioso, urgente e necessário, uma clara e decidida inversão no rumo das políticas educativas que mergulharam a Escola Pública na sua maior crise de sempre em democracia. A Escola Pública só poderá retomar o papel de elevador social que tem de ter, integrando todos os alunos, sendo instrumento de justiça e valorização social, rasgando horizontes e desarmando desigualdades com vista a um Portugal melhor e com futuro, se os governantes entenderem, verdadeiramente, os desafios que estão colocados e os caminhos que devem ser percorridos. Desde logo, é fundamental que exista vontade política e políticos com estatura e visão prospetiva que assumam como prioridade a valorização da Escola Pública e de todos os seus profissionais, a pacificação e a melhoria do clima escolar, o apetrechamento das escolas com os meios e recursos humanos e materiais necessários, a remoção dos obstáculos que dificultam um ensino de qualidade, feito de conhecimento, criatividade e sentido crítico. Só assim a Escola Pública poderá cumprir o seu importante e insubstituível papel social. A aposta na Educação tem de ser feita de uma forma sustentada e prolongada no tempo, assente num pacto de regime (que não pode ser fundado em tacticismos políticos conjunturais ou oportunismos demagógicos de puro eleitoralismo), acompanhado dos recursos financeiros necessários que permitam investir a sério no tanto que está por fazer. Idealmente, gostaríamos de ter na pasta da Educação um Ministro ou, no mínimo, um Secretário de Estado, com conhecimento e experiência real, direta e vivida de lecionação nas salas de aula do ensino básico e secundário, especialmente nas últimas duas décadas, para que pudesse verdadeiramente entender os problemas e necessidades da Escola e dos seus profissionais, docentes e não docentes. Se assim fosse, teríamos a certeza de que iria concordar connosco quando referimos que para termos uma Escola Pública melhor seria necessário conseguir:

 

1. A valorização e atratividade da carreira, com a devolução integral do tempo de serviço congelado (incluindo um mecanismo de compensação para os professores já aposentados, ou que estejam nos últimos escalões da carreira e já não possam recuperar todo o tempo a devolver), o reposicionamento de todos os docentes de acordo com o seu tempo de serviço, (resolvendo-se assim as injustiças ocorridas com as ultrapassagens) e a atualização dos índices remuneratórios (corrigindo a significativa perda de poder de compra ao longo dos últimos 15 anos), devolvendo-se justiça e esperança e criando condições para que possam regressar ao sistema milhares de professores que optaram por outros percursos profissionais, motivar os que ainda se mantêm no ensino e, finalmente, atrair os mais jovens à profissão, combatendo-se o dramático problema da falta de professores;

2. A promoção da Escola como um espaço privilegiado de conhecimento e de desenvolvimento de valores, criatividade e  sentido crítico, assente no rigor, respeito e responsabilidade, assegurando uma verdadeira igualdade de oportunidades, e garantindo as respostas educativas mais adequadas a cada aluno, para o que será fundamental a contratação dos recursos humanos necessários- psicólogos, terapeutas, assistentes sociais, professores de apoio/substituição, etc.;

3. A democratização da gestão escolar, alterando o atual modelo unipessoal e autocrático para um modelo colegial, de equipa diretiva eleita em conjunto, de forma universal e com limitação de mandatos;

4. A reversão dos mega-agrupamentos, devolvendo identidade às escolas, sentido de pertença, uma gestão democrática de proximidade e a melhoria do clima escolar;

5. O melhoramento e requalificação dos espaços escolares: climatização, atualização e manutenção dos recursos tecnológicos (incluindo internet fiável), auditórios, espaços de convívio abrigados para os alunos, salas de trabalho para os departamentos/grupos disciplinares e para receber Encarregados de Educação, conservação dos edifícios, mobiliário e equipamentos, etc.;

6. A criação de um maior número de vagas de quadro (deixando de as mascarar como meras necessidades transitórias) de forma a estabilizar mais docentes e permitir uma aproximação à residência, o que pode também ser conseguido com a recuperação da “lei dos cônjuges”;

7. A garantia da colocação de professores em respeito exclusivo pela lista nacional graduada, sem qualquer cedência, como seria a possibilidade da contratação direta de docentes pelas escolas e/ou municípios;

8. A atribuição de ajudas de custo e subsídios de alojamento adequados e eficazes, que resolvam de vez os graves problemas de habitação dos professores deslocados;

9. O fim das quotas no acesso ao 5.º e 7.º escalão e um modelo de ADD justo, motivador e transparente, com divulgação pública das classificações;

10. O respeito pela autonomia científica, pedagógica e didática dos docentes, recusando o “totalitarismo” pedagógico em voga, com a imposição de metodologias de ensino,  teorias, modelos e práticas, importadas de outros contextos e realidades, muitas vezes sem sucesso comprovado, ao sabor de modismos e “impressões digitais” governativas, prescritas numa política “top to down”, excludente de outras abordagens pedagógico-didáticas e experiências educativas;

11. Uma maior e melhor articulação com as instituições de Ensino Superior, assegurando uma formação  inicial exigente e de qualidade que prestigie a profissão, e também uma formação contínua que garanta a permanente atualização científica e pedagógica dos docentes, sendo aqui de sublinhar a importância dos Centros de Formação, que deverão ter mais autonomia e recursos financeiros para o desenvolvimento dos seus planos de formação;

12. A redução das horas da componente não letiva, pois a CNL tem sido, ao longo dos anos, um dos maiores fatores de exaustão e desgaste profissional, não só esvaziando por completo a redução do tempo de serviço letivo (ao abrigo do artigo n.º 79), mas também amarrando os professores às escolas em tarefas muitas vezes não adequadas ao seu perfil e sem ganhos significativos de produtividade na dinâmica escolar. Desse modo, seriam criadas condições para estimular a autoformação docente (com a frequência de seminários e colóquios, etc.). Paralelamente à redução das horas da CNL, seria fundamental assegurar a possibilidade de uma efetiva formação e atualização científico-pedagógica, relativa à formação contínua, à frequência de cursos especializados ou à realização de investigação aplicada, com a fixação do contingente previsto no n.º 1 do artigo n.º 108 do ECD (licenças sabáticas), a aguardar despacho governamental há mais de uma década;

 

13. A revisão dos programas das diversas disciplinas, procurando-se um correta articulação horizontal e vertical e a sequencialidade dos ciclos de ensino;

14. A reconfiguração das cargas horárias das áreas curriculares, revalorizando-se as Ciências Socias e Humanas e eliminando o conceito de “disciplinas estruturantes”;

15. A redução do número de alunos por turma e a definição de um limite máximo de turmas por professor, evitando-se situações injustas de sobrecarga de trabalho entre docentes;

16. O respeito efetivo pelas reduções no âmbito da aplicação do artigo n.º 79 do ECD, que deverão voltar a ser atribuídas nos limites de idade originais e transferidas para a componente de trabalho individual do professor;

17. O reforço substancial da redução horária atribuída ao cargo de Diretor de Turma, hoje por hoje, um dos cargos de maior responsabilidade, envolvimento pessoal, desgaste e dispêndio de tempo por parte dos professores que assumem esta função;

18. A revisão da carga horária dos educadores e professores em monodocência, assegurando uma maior igualdade na componente letiva comparativamente a colegas de outros ciclos de ensino e a aplicação do artigo n.º 79 sem alíneas discriminatórias ou necessidade de  autorização prévia;

19. A possibilidade de uma aposentação antecipada, sem penalização, para quem tenha completado 36 anos de serviço e/ou 60 anos de idade, por forma a combater a exaustão, o “burnout”, e evitar as baixas médicas prolongadas (mais do que justificadas, dadas as condições em que muitos docentes exercem a sua profissão), promovendo-se também o rejuvenescimento dos quadros;

20. A alteração dos critérios e uma maior transparência do regime da mobilidade por doença (MPD), pois as doenças não obedecem a quotas/vagas, ainda para mais não publicitadas no início do processo de mobilidade, ou a distâncias mais ou menos alargadas;

21. A possibilidade de integração na CGA de todos os docentes que manifestem essa intenção, em particular os que foram injustamente excluídos no passado, evitando-se assim situações totalmente inaceitáveis de discriminação;

22. A eliminação das tarefas e registos burocráticos inúteis, redundantes e de nula/questionável eficácia ou justificação, devolvendo tempo ao professor para a preparação das atividades letivas, entre outras, relacionadas com a docência;

23. O abandono da injusta comparação entre escolas públicas e privadas, através dos “rankings” de resultados em exames, pois é impossível e falacioso comparar o incomparável, desde logo, porque a Escola Pública não segrega, não exclui, não seleciona, inclui todos e é com todos que desenvolve o seu trabalho e se apresenta a exames;

24. A prevenção e o combate efetivo à indisciplina, à violência e ao bullying em meio escolar, pois o respeito e o cumprimento das regras e normas de conduta são a base do ato educativo e todos os elementos da comunidade escolar têm o direito a um ambiente de trabalho seguro e motivador, sem esquecer o pessoal não docente, tantas vezes esquecido e pouco valorizado não só no interior das escolas mas também pelos governos, nomeadamente nos salários e condições de trabalho;

25. Por fim, mas não menos importante, a criação de um clima de diálogo e respeito mútuo entre a tutela e os professores, que permita negociações sérias e resultados céleres e concretos, dando resposta às justas reivindicações docentes e eliminando práticas e posturas arrogantes, provocatórias e de falta de respeito em relação aos profissionais de educação, de que são exemplos… a suspeição constante sobre as baixas médicas (que em boa parte deixariam de existir se o Estado tivesse mantido a reforma após os 36 anos de serviço, impedindo desse modo o brutal envelhecimento da classe docente, entre outros fatores de desgaste causadores de muitas dessas baixas), a determinação de serviços mínimos “à la carte” que colocam em causa o direito à greve (reiteradamente considerados ilegais pelos tribunais), os atropelos e abusos na composição dos horários docentes,  a insensibilidade face a situações de agressão perpetradas por pais e alunos (com o silêncio dos responsáveis políticos, incapazes de assumir uma posição firme de repulsa e condenação), a recusa da mobilidade por doença, com a aplicação de critérios desumanos e injustos, e a incapacidade em resolver o problema da “casa às costas” de largos milhares de docentes ao longo de muitos anos, numa vida de precariedade, dificuldades financeiras e sonhos adiados.

 

São estas as 25 propostas e desafios essenciais que apresentamos em defesa da Escola Pública, pilar fundamental do nosso regime democrático e fator determinante de justiça social, de uma Educação de qualidade para todos e de um País com Futuro! Para tal, é imperioso que se respeitem e valorizem os professores!

Porque sem professores não há Educação!

E sem Educação não há progresso, nem futuro!»

Crónicas com tradição (VIII) - É tempo de preparar o “Cozido da Liberdade”

20.04.24 | Servido por José Manuel Alho

cozido-portuguesa.jpg

Imagem retirada daqui

César, que fez quase toda a sua vida na capital, essa metrópole que também ajudou a libertar, está de regresso à sua terra natal: Murça. É um murcense dos pés à cabeça, que prepara o próximo 8 de maio, feriado municipal, com acrescido aprumo.

Conhece as nove freguesias do concelho como as palmas das suas mãos. Embora a maioria dos “camaradas de partido” que conheceu nunca se tenham distinguido pelas tendências vincadamente religiosas, é um fiel devoto do Senhor dos Aflitos, de S. Tiago e da Rainha Santa Isabel, romarias da terra que cedo marcaram o seu imaginário de menino e moço.

Ainda hoje não sabe ao certo como foi tocado pelo imperativo de se juntar “à luta” para, como incessantemente lembra, “derrubar o fascismo e devolver o pão ao povo”. Não testemunhou a morte dos pais que, como ele, faziam jus às palavras de Miguel Torga: "São homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra". Gente pobre para quem o Marão sempre significou a derradeira, mas intransponível barreira para um mundo desconhecido por muitos.

Um dos passatempos preferidos é fotografar as singularidades daquele naco de país pejado de contrastes de clima, vegetação e culturas. Entrega-se à contemplação das vinhas e dos olivais com o pasmo essencial de quem os mira pela primeira vez recorrendo ao arrojo de quem, cedo de mais, aprendeu a ver sem ser visto. E é nesse silêncio preenchido que muitas vezes ignora o passar do tempo, prazer descuidado tantas vezes apontado por Aurora, a companheira que arrebanhou para a vida logo nos primeiros anos de sobrevivência lisboeta.

Foram ambos perseguidos políticos, que fizeram da clandestinidade um sofrido modo de vida. Acumularam histórias de madrugadas sobressaltadas por investidas da PIDE, ao som de calejados pés-de-cabra. Ostentam o sofrimento de terem sido separados pela prisão. César esteve quatro anos entregue aos cuidados da cadeia do Aljube onde aprendeu a conhecer os amargos encantos disponibilizados pelo famoso segundo andar. Tudo conheceu. Espancamentos, choques elétricos, tortura do sono…

Com inusitado encanto, recorda em muitas tertúlias a tarde em que, no rés-do-chão daquele parlatório vigiado por um intrometido agente da polícia, pediu Aurora em casamento. Em poucos meses, tudo foi conseguido. Nesse dia, só entraram as testemunhas e os padrinhos de casamento. À espera de todos, uma mesa e duas garrafas de vinho. “Um mimo!” – remata com orgulhosa ironia.

Por razões que a História se encarregou de enriquecer, abril é um mês extraordinariamente importante para César, um cozinheiro de predicados firmados. Começaram os preparativos do “Cozido da Liberdade”, uma inocente derivação do Cozido à Portuguesa, a servir no há muito ansiado 8 de maio.

Um poderoso pretexto para reunir a família, principalmente as duas filhas de quem tiveram de se separar para, “com a ajuda do Partido”, darem continuidade “à luta”. Uma dor que lhes esgaçou as entranhas e que ainda hoje contornam com indisfarçável mágoa.

Da ementa farão parte as incontornáveis queijadas e o sempre reclamado toucinho-do-céu de Murça, uma incumbência exclusiva de Aurora.

Mas a atração será o cozido, com arroz de forno a acompanhar. César não esquecerá as couves da terra regadas com o melhor azeite de Murça. Importantes serão as carnes, que recrutará nos mais fiáveis produtores da zona. É uma preocupação que não descura. Será numa panela deixada pela mãe, que cozerá com água todas as carnes. As que forem salgadas deixará de molho umas boas horas. Com o saber de experiência feito, sabe que deverá tirar primeiro os enchidos, depois a carne de porco e galinha. Só no fim, depois de bem cozida, retirará a carne de vaca.

E, para já, são estes os pensamentos que lhe ocupam uma existência, apesar de tudo, credora de orgulho e fé no amanhã ainda e sempre por cumprir.

Crónicas com tradição (VII) - Cabrito do Caramulo em tempo de partilhas

04.04.24 | Servido por José Manuel Alho

Cabrito.jpg

Imagem retirada daqui

António e Joaquim são irmãos que, na verdade, nunca experimentaram as cumplicidades da fraternidade devido a uma separação ocorrida na aurora das suas existências. As dificuldades financeiras de um casal de agricultores, teluricamente ligado ao Caramulo, obrigaram os pais a socorrerem-se de uma tia sossegadamente fixada na capital, que viu em António o filho que um casamento nunca realizado lhe poderia ter oferecido.

Joaquim, o mais velho, caminha agora para as sete décadas de vida, seguido de António a quatro anos de distância. A pretexto de um convívio a realizar, pela Confraria Gastronómica do Cabrito e da Serra do Caramulo, no último domingo deste mês, decidiram acertar vontades para se reencontrarem. Espera-se que o sol de abril ajude a enriquecer a mostra de sabores autóctones já publicitada, onde não falarão os vinhos do Dão, os licores e os doces confecionados com produtos locais.

Uma das principais ruas da terra estará fechada ao trânsito para ali se servirem as melhores amostras do Cabrito Assado no Forno que a Serra do Caramulo ajudou a celebrizar. Amostras que, a bem do saber perpetuado desde há longas gerações, terão de estar bem tostadinhas, acompanhadas de batata assada e arroz de miúdos feito com a fressura do cabrito, sem nunca esquecer os grelos salteados.

 A tia Rosa, por já não suportar as exigências de uma deslocação que até lhe poderia avivar memórias oportunamente exiladas nos confins de um coração apinhado de dilemas passados, optou por ficar em Lisboa. Os pais destes já se finaram, separados por escassos meses, no ano passado. Ao longo de todo este tempo, os dois irmãos precocemente desvinculados só muito raramente estiveram juntos. Nem os funerais dos progenitores os reuniram. No mais, os telefonemas de ocasião, em datas lembradas, ajudaram a manter um contacto timidamente cúmplice.

Desta feita, Joaquim impôs a si mesmo que fará uma receção que, pelo menos, ajude António a ter uma impressão bem diferente da terra onde foi parido. Na verdade, os comentários avinagrados da tia contribuíram para uma ideia enviesada da zona de Tondela, abraçada pelo distrito de Viseu. Para o efeito, recorreu aos préstimos de Francisco, membro ilustre da Confraria Gastronómica do Cabrito e da Serra do Caramulo.

Para desfeita do anfitrião, o irmão veio sozinho. A mulher e os filhos de António quedaram-se por Lisboa. Apesar de nenhuma explicação ter sido dada, Joaquim não se detém e apresenta o irmão ao confrade, impecavelmente envolvido por uma capa comprida de cor preta e uma outra castanha escura, de tecidos parecidos com burel, que é a substância de eleição com que se produz o traje típico da Serra do Caramulo, a Capucha. Ainda trajado com um chapéu preto de aba redonda, com uma fita castanha à sua volta, o exótico comparsa ostentava um medalhão em estanho com um fundo alusivo à Serra do Caramulo e, na frente, o busto de um cabrito.

Já dentro da viatura de Joaquim, o trio nem tem oportunidade para mais palavras de circunstância. O confrade, genuinamente cioso da sua missão, debita:

- Meu caro amigo, esta é uma zona de montanha de natureza granítica e xistosa. Sobre a flora, podemos dizer que predominam as urzes e a carqueja. Como daqui a pouco poderá constatar – cuidado com a curva Joaquim! - a serra é habitada por aldeias com casas e espigueiros em granito típicos desta região. Não esqueçamos que esta zona foi ocupada por romanos razão pela qual ainda se podem encontrar alguns sinais dessa época, como os trilhos de pedra.

De seguida, o condutor orgulhoso e feliz por ter tão perto de si o irmão com quem não cresceu, assegura, em jeito de convite, que “apreciar os campos verdes, a água cristalina dos ribeiros e a paisagem deslumbrante ao mesmo tempo que se respira um ar realmente puro é um prazer que não tem preço pá!”

Por seu turno, o irmão mais novo, sentindo o pequeno-almoço embrulhar-se com tão acidentado traçado, acena com um sorriso contido e distante, a roçar o enjoo. No périplo previamente definido, as horas que se seguiram serviram para falar do Caramulinho, o ponto mais alto da Serra com mais de mil e setecentos metros, onde se enxerga o mar, bem como do Cabeço da Neve, “de onde se pode ver em dias sem enevoamento a Serra da Estrela.” – assinalou o confrade.

Chegados ao Museu do Caramulo, cravado na vila do Caramulo e fundado nos anos cinquenta pelos irmãos Abel e João Lacerda, apreciaram a vasta coleção de obras de arte e automóveis ali patente. Num dos poucos momentos de arrebatamento, António deixa-se assombrar pelas obras ofertadas por colecionadores e artistas de renome como Pablo Picasso, Vieira da Silva, Salvador Dali e Jean Lurçat. Entretanto, as demais salas do museu, repletas de peças de ourivesaria, cerâmica, escultura, marfim, mobiliário, esmaltes, vidros e têxteis, logram remeter ao pasmo de um silêncio encantado o aparente forasteiro.

Pressionados pelo tempo, ensejo de ainda conhecerem a Reserva Botânica de Cambarinho, criada em 1971, na vertente norte da Serra do Caramulo, situada na povoação com o mesmo nome, na freguesia de Campia, concelho de Vouzela. Foi tempo de se deslumbrarem com a maior área de loendros da Europa, que pinta de roxo 24 hectares de solo. O confrade intervém de novo para frisar que “os loendros pertencem a uma espécie singular de crescimento espontâneo herdada do período geológico do Terciário.”

António, que nunca lograra ocultar uma certa incomodidade por razões até então incompreendidas para Joaquim, o anfitrião esforçadamente hospitaleiro, chama o irmão mais velho pelo braço enquanto o guia aproveita para atender o telemóvel. Visivelmente acossado por um desconforto finalmente insuportável, informa:

- A razão da minha vinda são as partilhas e o inventário que temos de fazer. Os nossos pais morreram. Temos de pensar em nós. Os meus rapazes estão no desemprego e… já sabes como são estas coisas. O dinheirito está a fazer falta a todos.

Joaquim parece ter levado um murro no estômago. Nem sabe o que pensar, quanto mais o que dizer. Ainda a refazer-se da investida, encaixa outro “gancho” do mano sempre protegido:

- Não vou poder ficar para o convívio do cabrito assado. Pedia-te que nos sentássemos à mesa para tratar destes assuntos. Tenho de estar em Lisboa antes do anoitecer. Sei que entendes…

De mãos já nos bolsos, chutando algumas pedras e de cabeça baixa, Joaquim sente-se impelido a honrar, uma vez mais, a memória e aquilo que pensa ser a vontade dos pais pelo que também não será desta que irá “cortar as pernas” ao seu único irmão. Optará por relegar-se para um plano secundário bem ao jeito dos que aceitam anular-se pela família:

- Muito bem. Não há problema. Gostaria muito de ficar com a casa dos nossos pais. Diz-me quanto queres pela tua parte?