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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (X) - Os mirtilos fazem (mesmo) bem

23.05.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem retirada daqui

Início de tarde. O calor aperta. António mira pela janela do seu vetusto ninho. A ambulância conduzida por Jaime, qual visita íntima, ainda não fez a sua aparição. Guiomar parece amarrada a um corpo que perdeu a exuberância sublimada por uma juventude que não conheceu espartilhos nem fronteiras. O acidente vascular cerebral logrou cingi-la a um conjunto de sons e movimentos trôpegos, que só a cumplicidade burilada ao longo de décadas adivinha.

De Couto Esteves, freguesia do concelho de Sever do Vouga, existe um casal que abraçou a nova rotina com a mesma submissão de quem nunca exigiu muito da vida. Um desprendimento que retrata um país difícil de lembrar, um tempo regido por outras vontades. Os olhos de António libertam aquela doçura que corre com a mesma fluidez do sangue transportado por veias salientes numa pele tingida por mil sóis, uma tatuagem vigorosamente perene da dureza imposta pela sapiência da terra e seus requintados caprichos.

Chegou a ambulância que os levará para hora e meia de fisioterapia. Sim. Ele também vai. Não deixará Guiomar entregue à solidão de gente e espaços até há pouco desconhecidos. Enfrentam, desde há mês e meio, uma provação mais dolorosa que as contrariedades impostas pelos humores da natureza que ousaram dizimar disputados cultivos e poupanças suadas. Sofrem os dois um mais que o outro, como que temendo ver numa eventual despedida o prenúncio de um outono dilacerante.

Jaime, o palavroso bombeiro, não se coíbe de se fazer sentir. Chegou. Finalmente. A ambulância parece conhecer-lhe os tiques de uma condução pretensiosa. Além do mais, fala alto. Percebe-se que Guiomar se sente incomodada. Mas a parelha prefere recolher-se à humildade de quem aceita que “isto é mesmo assim”. A submissão sempre foi a melhor forma de explorarem o mundo para além da sua casa e do pedaço de terra tão esmeradamente mantido.

Enquanto Guiomar, com a cabeça envolvida por um lenço descorado, mastiga saliva num esforço insano para pronunciar a mais fácil das sílabas, acentuado por uma óbvia falta de dentes, o marido tenta mascarar a situação da companheira metendo conversa com o estrepitoso soldado da paz. Jaime adora mirtilos. Num rasgo de coerência primária, é um dos elementos que ajuda a pôr de pé a Feira do Mirtilo, a ter lugar nos primeiros dias de julho. É um daqueles elementos que ninguém enjeita. Tem uma força braçal que vai escasseando nos dias de hoje.

Apesar de a proeminente barriga roçar o volante, o homem de vermelho é ágil. Há que reconhecê-lo. Do seu farto, mas bem regado bigode, sai conversa de interesse muito oscilante. Mas hoje deu-lhe para os mirtilos.

- O senhor António sabe que a televisão vem cá? Ouça, este ano vai ser uma Feira que o povo de Sever até se vai babar! – assegura ao mesmo tempo que acaricia o bigode com mal disfarçada vaidade.

Quase que não dando hipótese para retorquir, o bombeiro parece estar embalado:

- Não queira saber. Vai haver música, espetáculos com aqueles artistas que vemos nas cassetes e exposições de artesanato. Até já me falaram para ajudar a montar uns stands

António ainda não percebeu esta recente paixão pelos mirtilos, mas fica contente com a animação que traz à terra que o viu nascer. Por isso, confessa:

- Nunca pensei que esta coisa dos mirtilos ficasse assim… com esta festa toda.

Sem se deter, Jaime continua a promoção:

- É mais importante do que a gente pensa. Aquilo é fruto que faz bem à saúde. A doutora da dona Guiomar ainda não lhe disse nada sobre…

- Sobre o quê?! – reage, perplexo, o acompanhante.

- Então você não sabe que o mirtilo é “o fruto da juventude”?! Você é de Sever e não sabe?! Olhe que ajuda a curar infeções e atrasa o envelhecimento do cérebro. Ela que comece a comê-los. Vai ver que faz bem.

António está surpreendido. Sente-se impelido a compensar o seu desconhecimento cedendo à investida do inusitado embaixador daquele fruto silvestre.

Ainda a refazer-se das novidades, escuta uma oferta que vai aquecer-lhe o coração:

- Senhor António, sabe que mais? Fique descansado pois vou ser eu que lhe vou arranjar um cestinho de mirtilos para a sua senhora ver se melhora. Depois fale comigo. – sentenciou em jeito de certeza bíblica.

O dia tinha sido diferente. A viagem trouxera, afinal, um raio de esperança a rostos engelhados por auroras nem sempre sorridentes. Com os três filhos emigrados na América, receberam este gesto de bondade com a já quase esquecida felicidade de uma criança que chorou por um gelado em dia de penosa canícula. Sentem-se mimados, com o conforto dos que não passam indiferentes aos olhos de terceiros.

Os mirtilos fazem (mesmo) bem.

Crónicas com tradição (IX) - As conversas são como as cerejas

06.05.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem freepik

O Padre Herculano conhece o Fundão com a fidelidade de quem sabe escrutinar as linhas das mãos. É da terra. Conhece o povo e os espaços como poucos. É um pensador militante que há muito compreendeu, qual Fernando Pessoa irado com a resignação amorfa das massas, que PENSAR incomoda como andar à chuva.

É, pois, com esta margem de credibilidade, concedida por décadas de sóbria coragem, que criticou a ação do atual Ministro da Educação na última conversa – pasme-se! - com um vereador afeto ao partido que sustenta o Governo, salientando a sua perplexidade quando enfatizou que “se destrói um país no momento em que se opta por aumentar os alunos por turma e diminuir o número de professores por escola”.

A tolerância a estes rasgos inquietos de liberdade foi conquistada com a serena sapiência de quem aconselha gerações desde o século passado. Além do mais, é um benfiquista inveterado, que nada faz por ocultar ou atenuar o seu fervor pelo clube da águia. É mesmo um visitante assíduo da casa do Benfica do Fundão.

Mas é a paixão pelas cerejas que, há muito, o arrebanhou para outras missões, de índole mais terrena. É um fiel embaixador da cereja da Cova da Beira, um dos símbolos maiores da região centro. Por ser carnuda e doce, com aquela coloração veemente que vai do vermelho vivo ao vermelho-púrpura, foi batizada pelo sacerdote de “ouro vermelho”, pois não ignora que, a partir de 1950, se constituiu fator de riqueza económica das populações que a instituíram o seu cultivo entre as Serras da Gardunha, Estrela e Malcata.

Não se deixou acometer por populismos demagógicos quando o disputado fruto vermelho, além de poder ser comido cru, ao natural ou em saladas de fruta, passou a ser cristalizado, em compotas ou até mesmo em bombons. É uma alma pragmática que cedo acomodou o impacto da sua comercialização por sempre ter sabido que a altitude, a exposição solar e o clima da região ajudariam a celebrizar a qualidade da cereja que ajuda a marcar o fim do Inverno e a anunciar a Primavera. Acima de tudo, compreende e defende uma atividade que sustenta as populações de uma área geográfica de aproximadamente 1374 quilómetros quadrados, abençoando os concelhos do Fundão, Covilhã e Belmonte.

Hoje prepara-se para mais uma reunião preparatória da Festa da Cereja que, em junho próximo, receberá quase trinta mil visitantes em Alcongosta, freguesia do concelho do Fundão. Da ordem dos trabalhos, constará a organização do périplo pelas mais de sessenta tasquinhas, a visita aos pomares e do passeio motard, organizado pelo recém-criado grupo de motards que se elege como "Os trinca cerejas".

Sem aviso prévio, é intercetado por uma jovem professora de História que, a pretexto de um trabalho que está a desenvolver com os seus alunos, o confronta com a seguinte questão:

- Por que razão, ao longo dos últimos anos, tem-se assistido a um número crescente de jovens sacerdotes que recomeçaram a usar o hábito eclesiástico?

Sem se deixar intimidar pela acutilância da pergunta, o Padre Herculano enche o peito, expira com premonitória convicção e esclarece:

- Minha cara, o Código de Direito Canónico afirma qualquer coisa do género: "Os clérigos usem trajo eclesiástico conveniente, segundo as normas estabelecidas pela Conferência Episcopal, e segundo os legítimos costumes dos lugares". O que acaba de constatar vai de encontro ao entendimento da Conferência Episcopal Portuguesa que determina aos sacerdotes o uso de “um trajo digno e simples de acordo com a sua missão”. Sabe, nós temos de estar permanentemente identificados como sacerdotes. E essa identificação é habitualmente feita pelo uso de batina ou do fato preto com cabeção.

A professora, segura da réplica do interlocutor, atira:

- Ó Padre Herculano, não seria melhor que os sacerdotes fossem antes de tudo reconhecidos pelo seu comportamento do que propriamente pelo vestir?...

O temente servidor de Deus sente-se, ao contrário do que se poderia esperar, estimulado a manter a dialética e liberta:

- Talvez tenha razão. Por vezes, nos meus colegas mais novos, o recurso à farda poderá advir da necessidade de afirmação e procura de estatuto, quem sabe de uma certa noção carreirista ou até mesmo duma visão do sacerdócio bastante intransigente ou, em grande em parte, de uma eventual insegurança interior...

A jovem docente sente-se inusitadamente desarmada e paralisa-se num silêncio inibidor perante semelhante franqueza. Ainda a refazer-se daquela resposta descomplexada, fica com a promessa do experimentado presbítero:

- Já diz o povo que “as conversas são como as cerejas”, um adágio que representa a ideia de “atrás de uma vêm as outras”. Isto é, depois de comer uma cereja é quase impossível resistir a outra. Por isso, temos de concluir esta conversa, mas agora tenho a reunião com o presidente da Junta de Freguesia para tratar da festa das verdadeiras cerejas!...

Recuperação do tempo de serviço dos professores - uma proposta cínica!

03.05.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem retirada daqui - LUSA, Miguel A. Lopes

Desengane-se quem - se for professor/a - hoje pensar que recebeu um bom sinal, uma potencial boa notícia após a reunião com a nova equipa do Ministério da Educação, Ciência e Inovação.

Além de propor um faseamento que se constitui em mais um imposto, a somar a todos aqueles que a classe docente já pagou, avança-se com a revogação da migalha inscrita no famigerado "mecanismo de aceleração da progressão na carreira" e - o mais grave! - mantêm-se, no âmbito desta apregoada recuperação, as quotas de acesso ao 5º e 7º escalões quando se escreve:

Durante o período de recuperação serão mantidas as regras de progressão (artigo 37º), nomeadamente a exigência de vaga para acesso ao 5º e 7º escalões e os efeitos da avaliação (artigo 48º), previstas no Estatuto da Carreira Docente."

Estamos, de uma penada, perante uma tripla penalização. NÃO é assim que se respeitam e se valorizam os professores.

Na verdade, o que foi apresentado não passa de um rascunho para uma recuperação, vincadamente administrativa, sem efeitos nas carreiras dos professores.

É de um cinismo atroz presumir que se pode falar em recuperação ou devolução do tempo de serviço dos professores mantendo, em simultâneo, a exigência de vaga para acesso ao 5º e 7º escalões. Isto é outra coisa qualquer: habilidade, truque, ilusão, artimanha...

Como (muito) bem assinala Paulo Guinote: 

Com esta medida,o ministro das Finanças acaba por ter razão… quase ninguém progredirá seja o que for este ano com base nesta pretensa parcela, ficando 99% para 2025.

Nestes termos, jamais poderemos encarar este processo como sendo uma negociação. Quando muito, estaríamos a testemunhar uma patranha em que os conceitos, legais e morais, de recuperação ou de devolução significariam coisa bem diversa do comummente aceite. Absolutamente intolerável!