A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.
Com base nos dados que ontem AQUI apresentei, é possível propor um conjunto de estratégias que a Câmara Municipal de Albergaria-a-Velha poderia viabilizar para inverter as preocupantes tendências demográficas e promover o desenvolvimento sustentável do concelho. Seguem algumas propostas concretas:
Incentivar a natalidade
Apoios diretos às famílias: Criar subsídios para recém-nascidos (cheques-bebé) e benefícios fiscais para famílias com mais filhos.
Creches e pré-escolar acessíveis: Aumentar o número de vagas gratuitas em creches ou em jardins de infância municipais.
Horários flexíveis: Incentivar empresas locais a adotarem horários flexíveis e medidas de conciliação trabalho-família.
Promoção da habitação acessível: Construir ou subsidiar habitação a custos controlados - anunciado somente há semanas - para jovens casais e famílias.
Reverter a perda de população
Atração de novos residentes: Lançar campanhas para atrair residentes, destacando a qualidade de vida e oportunidades no concelho.
Incentivos para fixação de jovens: Oferecer novos benefícios fiscais, apoio ao empreendedorismo e habitação a preços acessíveis para jovens adultos.
Apoio ao regresso de emigrantes: Criar programas que incentivem emigrantes a regressar, oferecendo apoio financeiro e oportunidades de emprego.
Enfrentar o envelhecimento populacional
Infraestruturas para idosos: Democratizar o acesso a centros de dia, lares e serviços de apoio domiciliário para melhorar a qualidade de vida da população sénior.
Envolvimento dos idosos na comunidade: Criar mais e melhores programas de voluntariado e participação cívica que promovam o envelhecimento ativo.
Iniciativas intergeracionais: Estabelecer, duradouramente, atividades que promovam o convívio entre jovens e idosos, como projetos educacionais ou culturais.
Reforçar a Educação
Melhorar a atratividade das escolas locais: Investir em infraestruturas escolares modernas, com mais espaços desportivos, mais equipamentos tecnológicos e programas extracurriculares verdadeiramente atrativos.
Parcerias com universidades: Criar polos de formação ou de investigação em colaboração com instituições de ensino superior próximas.
Incentivar o regresso de estudantes: Oferecer incentivos para jovens que concluam estudos superiores e regressem ao concelho.
Fomentar o desenvolvimento económico
Captação de investimento: Atrair mais empresas e indústrias para criar empregos locais, especialmente em setores que empreguem jovens.
Empreendedorismo jovem: Apoiar mais start-ups e mais iniciativas empreendedoras com subsídios, formação e espaços de coworking.
Turismo sustentável: Promover, de forma mais integrada e ambiciosa, o património natural e cultural do concelho para atrair turistas e criar novas oportunidades económicas.
Promoção do bem-estar comunitário
Apoio à Saúde: Reforçar, em estreita articulação com a tutela, os serviços de saúde locais, incluindo a generalização de cuidados de saúde preventiva e especializados para idosos.
Infraestruturas de lazer: Criar mais espaços públicos atrativos, como parques e áreas desportivas, para fomentar a vida comunitária. A propósito, onde pára o Parque Verde Urbano?
Programas culturais: Desenvolver, sustentadamente, iniciativas culturais regulares que envolvam todas as faixas etárias e reforcem o sentido de pertença.
Monitorização e comunicação
Criação de um observatório demográfico: Monitorizar regularmente os indicadores populacionais para avaliar o impacto das medidas implementadas.
Transparência e envolvimento da comunidade: Partilhar resultados e envolver os cidadãos na definição de políticas públicas por meio de consultas públicas e fóruns participativos.
Estas propostas, obviamente adaptadas à realidade específica de Albergaria-a-Velha e se implementadas com o apoio de parceiros locais, regionais e nacionais, poderia constituir-se num plano estratégico robusto, apoiado por investimento público e privado, para, justamente, ajudar a transformar as atuais tendências demográficas em oportunidades para o concelho. Urge fazê-lo pelo futuro de Albergaria.
Volto, por isso, a esta matéria, socorrendo-me, de novo e também, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, reconhecida pela sua independência política e fiabilidade técnica dos dados que disponibiliza. Em consequência, destaco as seguintes informações atualizadas sobre o concelho de Albergaria-a-Velha até ao ano de 2021:
Saldo Natural:
Em 2010, Albergaria-a-Velha registou um saldo natural positivo, com mais nascimentos do que óbitos. No entanto, dados atualizados indicam que, a partir de 2018, o concelho passou a apresentar um saldo natural negativo, resultado de um aumento no número de óbitos e de uma diminuição nos nascimentos - uma evidência, aliás, confirmada pelos Censos de 2021.
Percentagem de Jovens com Menos de 15 Anos:
A proporção de jovens com menos de 15 anos em Albergaria-a-Velha tem vindo a diminuir ao longo dos anos. Em 2018, assinale-se, esta percentagem já se situava abaixo da média nacional, tendência que se manteve nos anos subsequentes.
População Residente:
De acordo com os Censos de 2021, a população residente em Albergaria-a-Velha era de 24.841 habitantes, representando uma diminuição de 1,6% em relação aos 25.252 habitantes registados em 2011.
População Urbana:
A área urbana de Albergaria-a-Velha registou um aumento populacional, passando de 10.568 habitantes em 2011 para 11.058 em 2021.
Estrutura Etária:
Em 2021, a distribuição etária da população urbana de Albergaria-a-Velha era a seguinte:
0-14 anos: 1.582 indivíduos
15-64 anos: 7.290 indivíduos
65 anos ou mais: 2.186 indivíduos
Índice de Envelhecimento:
O índice de envelhecimento, que representa o número de idosos por cada 100 jovens, tem aumentado em Albergaria-a-Velha. Em 2021, havia 2.186 indivíduos com 65 anos ou mais e 1.582 indivíduos com menos de 15 anos, indicando um índice de envelhecimento superior a 100 (!), o que significa mais idosos do que jovens.
Número de Alunos no Ensino Não Superior:
O número de alunos matriculados no ensino não superior em Albergaria-a-Velha tem vindo a diminuir. Por exemplo, em 2018, registou-se uma redução de 16,38% em comparação com 2010, refletindo a diminuição da população jovem no concelho.
Estes indicadores demográficos evidenciam desafios significativos para Albergaria-a-Velha, nomeadamente o declínio populacional e o envelhecimento da população, fatores que não deixarão de condicionar fortemente o desenvolvimento socioeconómico do concelho nos próximos anos. Apresentarei AMANHÃ um conjunto de propostas que a edilidade já poderia ter desencadeado ou incrementado, de tão incipientes que se revelaram algumas iniciativas pontuais.
A exigência de devolução dos manuais escolares, nos 3.º e 4.º anos de escolaridade (ver AQUI), combinada com proibições absurdas, como não permitir que os alunos levem os livros para casa, expõe uma política desfasada da realidade pedagógica. Com características que tornam a reutilização impraticável, esta medida gera disparidades, penaliza as famílias e, mais grave, compromete o direito das crianças a uma aprendizagem plena.
Da perspetiva legal: O artigo 74.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à educação de qualidade e à igualdade de oportunidades. Este direito não pode ser interpretado de forma restritiva por uma lei que, ao exigir a devolução dos manuais, inibe a liberdade pedagógica e desvaloriza o papel do livro como ferramenta de aprendizagem personalizada. Além disso, o artigo 13.º garante igualdade entre cidadãos, mas as práticas diferenciadas entre escolas, evidenciadas nesta situação, violarão este princípio.
Da perspetiva financeira: A reutilização de manuais no 1.º Ciclo revela-se economicamente contraproducente. Com taxas de reutilização “praticamente nulas” e custos associados à recolha, triagem, armazenamento e reciclagem dos livros, o programa transforma-se num desperdício de recursos. Pior, as famílias acabam por suportar os custos indiretos ao terem de pagar livros considerados “inadequados” para devolução ou adquirir materiais complementares para colmatar lacunas pedagógicas.
Da perspetiva pedagógica: No 1.º Ciclo, o livro escolar não é apenas um suporte de informação; é uma ferramenta de trabalho essencial para o desenvolvimento das competências básicas. A possibilidade de sublinhar, recortar, preencher e até de errar faz parte do processo de aprendizagem. Restringir este uso transforma o livro em algo intocável, de índole asséptica, criando um ambiente de aprendizagem condicionada, que contradiz os princípios de uma educação ativa e inclusiva. Além disso, proibir que os alunos levem os manuais para casa agrava as desigualdades, uma vez que impede muitos de estudar em casa, sobretudo, os que não têm acesso a outros materiais didáticos.
Em razão do exposto, entendo que a política de devolução obrigatória dos manuais dos 3.º e 4.º anos ignora os princípios pedagógicos, sobrecarrega as famílias e falha no objetivo da sustentabilidade. Uma verdadeira reforma passaria por apostar em outros materiais reutilizáveis ou complementares, deixando os manuais do 1.º Ciclo fora de qualquer imposição de devolução. Afinal, estamos a formar cidadãos para um futuro criativo e crítico ou apenas a treinar crianças para "não estragar o que não lhes pertence"?
Redução do custo do solo: A promessa de terrenos 20% mais baratos é, em teoria, uma alavanca crucial para reduzir os custos globais da construção e, por consequência, dos preços das casas. Se implementada com sucesso, poderá efetivamente representar uma oportunidade real para as famílias com menor poder de compra.
Estímulo ao investimento: A criação de preços atrativos para os construtores poderá incentivar o setor privado a investir mais em projetos de habitação acessível, contribuindo para o aumento da oferta.
Controlo da expansão urbana: A proposta inclui mecanismos para evitar a expansão descontrolada de aglomerados urbanos em terrenos rústicos, promovendo, em tese, um desenvolvimento mais sustentável e racional.
O mau
Eficácia questionável: Desenganem-se ao mos líricos porque reduzir o preço dos terrenos não garante automaticamente que os preços finais das casas também diminuam. Os promotores imobiliários, sempre pragmáticos, poderão simplesmente absorver essa margem de lucro sem endossar o benefício ao consumidor.
Falta de fiscalização: Sem um sistema eficaz de monitorização e regulação, haverá (sempre) o risco de especulação disfarçada, com terrenos a serem adquiridos a preços mais baixos, mas (re)vendidos a preços elevados.
Desafios na implementação: A efetiva aplicação desta nova legislação depende da colaboração de vários atores (municípios, construtores, proprietários de terrenos), sendo previsível que surjam entraves burocráticos e interesses divergentes, nem sempre confessáveis.
Impacto ambiental: A conversão de terrenos rústicos para urbanos poderá acarretar riscos ambientais, como a perda de áreas verdes e o aumento da pressão sobre infraestruturas públicas.
Em resumo, e para concluir, a nova Lei dos Solos até poderá parecer, à primeira vista, uma medida acertada para mitigar a crise habitacional, mas esconde armadilhas que não podem ser ignoradas. A possibilidade de os preços das casas permanecerem elevados, a especulação do mercado e a pressão ambiental são riscos reais que podem comprometer os objetivos agora anunciados. De igual modo, a descentralização das decisões para os municípios poderá resultar em desigualdades na aplicação da lei, agravando os problemas de ordenamento do território. Resta saber se o Governo terá capacidade para garantir que esta iniciativa não seja apenas mais um "fogo-fátuo" no combate à crise da habitação.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata.»
Orlando é um rapaz de proveniência humilde. Contido nos gestos e deliberadamente reservado nas palavras, desde cedo aprendeu a gerir o tempo. O que muitos sempre tiveram por uma irritante passividade, daquelas que indicia um temperamento avesso ao arrojo, mais não era do que a carapaça para uma racional perseverança, que projeta meticulosamente cada etapa da vida, encarda como degrau naquela disputada escada com sentido ascendente.
Aos vinte e seis anos, com três irmãos dispersos pelo mundo, reflexo de um tempo em que o sucesso estava lá fora, Orlando soube otimizar o facto de em seu redor não ter a condicioná-lo elevadas expectativas. Às vezes, é bom que não se espere muito de nós porque, mais do que conter a pressão em níveis favoráveis, tem o condão de aumentar consideravelmente as possibilidades de surpreender quem nunca apostaria um chavo no dorsal que nos foi atribuído.
Filho de um pai militantemente alcoólico e irremediavelmente entregue ao perverso encanto de três maços de tabaco diários, este nosso amigo teve a almofadá-lo uma mãe desgastada pelo sacerdócio de, a todo o custo, defender a sua ninhada. Com singular engenho, que alguns adjetivariam de visionário, Orlando logrou licenciar-se em Contabilidade e Gestão. O seu reduzido, previsível e já largamente ultrapassado guarda-roupa faz antever um gestor pragmático. Nos últimos anos, os almoços e jantares alternavam entre a maçã e a banana e a banana e a maçã. Olhado pelos colegas de faculdade com um misto de pena e admiração, o “Landinho”, assim batizado pelo amor de mãe, está longe de ser um caso de sucesso entre o sexo oposto. As casadoiras meninas que com ele se cruzaram nos entroncamentos da vida dividem-se entre o respeito pela serena humildade e a indiferença por quem não demonstra ter qualquer plastia que desfaça aquela aparência séria e tensa, traduzida por duas mãos invariavelmente escondidas nos bolsos de uma já ruçada ganga.
Uma vez mais deixado à sua sorte, o novel gestor e contabilista não cessou de remeter curricula, de responder a anúncios de jornal e de comparecer a entrevistas onde, sem exceção, foi ironicamente excluído por excesso de habilitações. Como de habitual, a vida não lhe sorriu por dá cá aquelapalha. Nasceu para viver com dificuldade e enfrentar a adversidade.
Um dia e quando se aprestava para recolher um daqueles periódicos de anúncios com distribuição gratuita, Orlando choca literalmente com Liliana, ex-colega de curso, filha de um bem-sucedido casal de médicos mas, essencialmente, um “borracho” pejado de beleza e encanto. Absolutamente inesperado, o encontro reservaria estranhas revelações. Liliana estava ainda sem emprego e algo prostrada em razão de tantas dificuldades. Também ela almejava ingressar no mundo do trabalho para obter a sonhada independência financeira. Frustrada e até zangada com a vida, percebe ter em Orlando um cúmplice em tão denso infortúnio. Ele aparenta a serenidade de quem sabe que, mais tarde ou mais cedo, contornará os obstáculos. E isso dá-lhe alento. Trocaram lamentos, ofereceram sorrisos e registaram contactos.
Um mês depois, decidiam aventurar-se na fundação de um negócio de acolhimento noturno de crianças para que jovens pais possam desfrutar de noites mágicas sem as inoportunas interrupções dos pequenos. Orlando conseguira cativar a confiança dos progenitores de Liliana que até avançaram com a “massa”. Tudo tem corrido bem e a mudança de instalações está para breve. O negócio cresceu. Ele já adquiriu o seu primeiro carro, veste bem melhor e até se consta que se entregou nos braços da enleante “Lili”.
Os que o conhecem desde pequeno menosprezam o sucesso. O rapaz calado e tímido assim se mantém. Mas agora acusam-no de arrogante. “Está melhor na vida e já nem cumprimenta as pessoas!...” – Dizem. Não gostam da cor do carro, “verde tropa”, que “está a cair podre de velho” e especulam que a sua ligação à doce Liliana mais não será do que “o golpe do baú”. Num ápice, Orlando deixou de ser um rapaz trabalhador e humilde. É o alvo preferido da coscuvilhice feita em surdina e da avareza que não suporta o bem-estar alheio. “Como é que aquela rapariga se interessou por um tipo daqueles?!” – inquirem, perplexas, as beatas solteironas da rua que, em tempos, chegou a ter pena do agora apoucado “senhor doutor”. Há quem vaticine que “não vai ser preciso esperar muito. Quanto mais alto se sobe, maior é a queda!”
Uma vez invejosos, para sempre invejosos. Mais do que uma religião, a inveja passou a ser o alimento daquela gente frustrada e incapaz. “Landinho” percebeu isso e sente-se estranhamente motivado. Em jeito de graça, sempre que leva Liliana até casa ver a mãe, previne: “tem cuidado! A inveja mora aqui…”
7.00 Horas. O ensonado Freitas abre oficialmente as portas do café “Entre Nós”. A equipa da empresa que assegura a limpeza do estabelecimento acabara de sair. O fresco e desinfetado cheiro do lava-tudo perfumado dava o tom para mais um amanhecer em que, sem exceção, cabe ao Tó Pereira abrir as hostilidades com o previsível galão, acompanhado do benfazejo pão com manteiga. “O rapaz pensa que é patrão. Lá por ganhar umas massas como eletricista recém estabelecido, fala e caminha com a segurança dos manientos…” – pensa, sem cerimónia, o nosso amigo Freitas, ainda mal refeito de uma noite consumida em claro. O pastor alemão do vizinho não o deixa dormir há semanas, exasperando-o ao ponto de assumir, com a cumplicidade que só dispensa aos botões do seu bem posto colete negro, a profecia velada de “um dia destes, ainda lhe meto na gamela uns pozinhos da minha avó!…”
8.12 Horas. Chegam, sempre pela mesma ordem, os clientes do costume. A menina do Cartório Notarial – “aquelas meias ficam-lhe tão bem…” – o senhor Amândio, um dos mais conhecidos e respeitados empregados bancários da cidade; a D. Isabel, sempre com pressa para levar os miúdos para o colégio e, com intransmissível vulgaridade, o “par de teteias” formado pela indomável dupla «Alcina & Idalina». Elas são as “prendas” que atendem meio mundo nos balcões dos correios, responsáveis únicas pelas intermináveis filas que conferem às pedras da calçada nova e recorrente utilidade. “Já faltou mais para as regar com café! Admite-se que tenha esperado hora e meia para levantar uma encomenda?!”, resmunga, sem balbuciar qualquer zunido digno desse nome, o diligente, mas calado Freitas.
Ele tomou conta do negócio que sempre foi do sogro. A vida que leva no “Entre Nós” nunca constou dos seus planos de vida, mesmo quando gizava, num misto de aventura e rebeldia, formas e meios de fugir à guerra no ultramar. O filho, que o cunhado, por ser também padrinho, insistiu, a bem da tradição familiar, batizar de Adélio Joaquim – “que raio de nome para o miúdo!” – está há seis anos para concluir a licenciatura em Engenharia do Ambiente. Não há semana que não telefone, a pretexto disto ou daquilo, para pedir mais uns cobres ao “velho”. Férias nunca soube o que era. Viajar não parece estar nas suas conjeturas para o futuro próximo. Está, simplesmente, cansado do presente a que chegou a sua vida. Dilacera-se porque interiormente acumula-se a irónica desilusão com a vontade de, sem mais demoras, explodir. Dizer e fazer o que lhe desse na gana era a sua maior ambição imediata. Contudo, resigna-se. “Iriam pensar que me passei de vez! Tenho um negócio. Não me posso dar a essas maluquices!”
Às dez horas chegará a sua mulher, a incansável Elisabete, que já adiantou tudo em casa, até a “janta”. Hoje, ele sente que tem de sair. Vai pedir à parceira de muitas insónias que segure o barco enquanto finge que terá de ir ao banco tratar de umas papeladas. Chegada a horinha, despede-se recorrendo assaz determinado à proteção de um simples casaco, que o descaracteriza. Por momentos, também ele vai pensar e sentir que não é aquilo em que se tornou. Na rua, até pode acontecer que não o reconheçam como o “Freitas do café”.
Afinal, para quê esta fuga? Freitas, aonde é a ida? Tanto arrojo para acabar, sentado e absorto, num banco da estação dos caminhos-de-ferro?!...
Mais um amanhecer na “ala dos condenados”, o tal espaço batizado por enfermeiras e restante pessoal auxiliar para reunir aqueles que, ainda vivos, têm ali mais certa a morte que a vida. Gracinda, a “inquilina” que ainda afronta, com assinalável estoicismo, a rigorosa frieza dos prognósticos médicos – que lhe vaticinaram, num misto de otimismo e rara sorte, sessenta dias de vida – é a alma que se segue. Não tem parceiros na mais temida antecâmara da morte. O fino mas certo chiar dos carrinhos que, além da primeira refeição do dia, transporta a desde logo vencida medicação já entrou no quarto desta nossa irmã. Com os sentidos turvos e consumidos pela doença, ela logra ver, ouvir, cheirar e sentir o que a morte ainda não lhe resgatou. Os movimentos rotineiros e os olhares entretanto prostrados daquela gente ironicamente vestida de branco, que sempre respondeu aos seus gracejos de estreante na ala da morte, confirmam-lhe finalmente a inevitabilidade do óbvio.
Gracinda já viveu quatro décadas e meia. Assumidamente católica, não experimentou a bênção de ser mãe – problemas… – a graça de enfim realizar aquele singular feito que testemunhou fazer a felicidade de tanta gente que conhece desde os bancos da primária. Peixoto, o marido, homem porventura burgesso, mas essencialmente bom, é visita diária garantida. Sempre de fugida e com o seu intragável traje de funcionário camarário empoleirado nas viaturas de recolha do lixo, daqueles que não usam máscara, cativa pela timidez com que esgana, sem apelo nem agravo, o verde boné que, apesar de habitualmente enterrado, não chega para lhe esconder as farfalhudas patilhas de sportinguista acrítico.
Arrendaram casa e pensavam fazer uns anexos no próximo Verão. Ele, que reconhecera “não ter cabeça” para fazer o código, não tinha carro. Há dois anos, o solitário casal empenhou-se e comprou uma daquelas viaturas motorizadas de quatro rodas, à base de fibra de vidro, vítimas demasiado previsíveis da impaciência dos condutores encartados. Com a doença da sua “senhora”, o “troiloil”, como decidiram chamar-lhe, não chegou afinal a conhecer os quilómetros de estrada programados. A cassete provocando “a garagem da vizinha”, banda sonora que acompanhava as manhãs de sábado religiosamente reservadas para limpeza dos interiores, nunca mais se ouviu. O pouco que prometia terem por garantido perdeu-se com a amarga certeza de uns grãos de areia escoados entre dedos.
Peixoto não está hoje obrigado a ter pressa. Os colegas de labuta dispensaram-no, exigindo-lhe que passasse o dia junto da sua companheira, a vigilante implacável que nunca lhe poupou um brusco sermão no regresso da taberna do Abílio, após disputadas sessões da mais invejada enologia bairrista. Todos sabem que tudo deverá acabar hoje. Todos sentem que a desprezada “Funerária Antunes & Filhos” terá amanhã novo serviço. Nem chega a ser favor. Apenas pânico de estar no lugar do Peixoto. Eles que se despeçam.
De barba feita, com o cabelo ainda molhado por um banho tomado em respeitosa resignação, o homem do lixo senta-se na cadeira ao lado da única cama ocupada, a penúltima morada terrena de Gracinda. Com os dedos das mãos entrelaçados, com os braços apoiados nas pernas, deixa cair a cabeça. Consegue ainda desviar os olhos em direção ao rosto da cachopa que conquistara em 1997, no bailarico em honra do padroeiro da terra. Sem que possa esboçar um par de frases previsivelmente tolhido pela emoção, vislumbra os agora fechados olhos de Gracinda. Inesperadamente, não parece está a dormir. Tem estampada a perturbante tranquilidade de quem já deixou de estar. Com braço envolvendo o nosso amigo, o enfermeiro-chefe sentencia: “lamento muito.”
Foi só o tempo de sair do quarto. Iniciou-se o ritual formal para a libertação do corpo. Entram aqueles que garantem a utilidade daquela ala. Há que preparar literalmente a cama para os que hão de vir. Sim. “Porque ninguém fica para semente.” - Dispara a tarimbada auxiliar.
Na receção, Peixoto poderá levantar os poucos haveres de Gracinda. Um par de chinelos comprados na loja do chinês, junto ao hospital, umas quantas camisas de dormir e um desgastado terço que tinha pedido quando recebeu a notícia do seu médico de família.
Foto retirada do blogdealbergaria - skyscrapercity.com
Que futuro para
a Praça Alameda 5 de Outubro?
O texto por mim escrito e publicado, a 17 de outubro de 2012 (!), no jornal “Correio de Albergaria, pretendeu formular uma análise crítica e fundamentada sobre a negligência a que fora votada a Praça Alameda 5 de Outubro. Infelizmente, volvidos mais de doze anos (!), o seu conteúdo permanece atual, dado o imobilismo evidenciado pela Câmara Municipal até ao corrente ano de 2025. A apreciação foi incisiva ao expor questões que identifiquei como cruciais: a falta de planeamento estratégico, a ausência de discussão pública e a prioridade dada ao lucro ou à estética em detrimento da funcionalidade e da vivência comunitária.
A crítica à alienação dos espaços públicos, transformados em meros pontos de passagem ou áreas privadas de consumo, é (ainda) extremamente relevante e persiste como uma denúncia válida em muitas cidades. Quis fazê-lo com ironia e indignação, que emergem com as expressões "tesourinho escusadamente deprimente" ou "morte lenta e agonizante da Praça", para, justamente, reforçar a mensagem central: a praça não deve ser uma paisagem estéril, mas um espaço vivo, pulsante e dinâmico.
O arrastamento do estado de abandono até 2025 revela o fracasso das lideranças locais em priorizar este espaço público como elemento integrador e democratizante. Apesar do meu tom esperançoso de que uma intervenção estruturante pudesse ocorrer "a breve trecho", a realidade desmentiu essa expectativa, transformando a crítica inicial numa acusação ainda mais contundente e, por isso, justificada.
Seja pelo desinteresse em abrir à comunidade o debate público ou pela incapacidade de propor um projeto transformador, a Câmara Municipal parece falhar em compreender o valor simbólico, social e cultural desta praça central. Este texto, mesmo tantos anos depois, continua uma exortação à reflexão urgente sobre o papel do poder local na promoção de espaços inclusivos, demonstrando que a verdadeira revitalização de uma cidade também passa, inevitavelmente, pela valorização dos seus espaços públicos mais nobres.