Sentença
Foto de Jelena Jovanović
SENTENÇA
"Sê sóbrio,
E sorri das tonturas dos medíocres
Com dó e piedade.
Não descubras que existes:
Tem caridade."
Afonso Duarte
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Foto de Jelena Jovanović
SENTENÇA
"Sê sóbrio,
E sorri das tonturas dos medíocres
Com dó e piedade.
Não descubras que existes:
Tem caridade."
Afonso Duarte
"A alegria evita mil males e prolonga a vida."
William Shakespeare
Imagem retirada daqui
Sobre o essencial da Lei
A Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro, que aprovou o Estatuto do Aluno e Ética Escolar, elencou os direitos e os deveres dos alunos dos ensinos básico e secundário, bem como o compromisso dos pais, encarregados de educação e demais membros da comunidade educativa. Decorrendo da Lei de Bases do Sistema Educativo, a norma afiançou promover valores como o mérito, a assiduidade, a responsabilidade, a disciplina e a integração. Para além de definir os direitos – como o acesso a uma educação de qualidade, o respeito à integridade e a participação ativa na vida escolar – a Lei impôs deveres aos alunos (como por exemplo, o estudo, a pontualidade, o respeito pelos membros da comunidade escolar) e regulou, de forma tão detalhada quanto possível para aquela altura, os procedimentos disciplinares, que vão desde as advertências e as ordens de saída até à suspensão, à transferência e, em casos extremos, à expulsão.
Vulnerabilidades, lacunas e insuficiências
Podendo ter sido, para alguns, um marco na promoção do (bom) comportamento e dos direitos dos alunos, a Lei acusa algumas fragilidades, sobretudo tendo em conta os quase 13 anos (!) passados desde a sua publicação. A saber:
Propostas de aperfeiçoamento da Lei
a) Imposição de sanções mais severas, designadamente no 1.º Ciclo
b) Maior responsabilização dos pais e encarregados de educação
A Lei n.º 51/2012 representou in illo tempore um avanço importante na proteção dos direitos dos alunos e na promoção de um ambiente educativo saudável. No entanto, volvida mais de uma década, resulta evidente a necessidade de revisões e de aperfeiçoamentos para enfrentar os desafios atuais, especialmente no que diz respeito ao imperativo de reinstituir a disciplina como condição impenhorável de aprendizagem, bem como a responsabilização dos pais e encarregados de educação. Em consequência, entendo que a realidade contemporânea exige a revisão e a atualização desta legislação. Por coerência, defendo medidas mais rigorosas e a implementação de mecanismos de acompanhamento eficazes, que não só reforçariam a disciplina e a segurança nas escolas, como também contribuiriam para uma educação mais inclusiva e adaptada às novas realidades sociais e tecnológicas.
"Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado."
Gabriel García Márquez
Margarida acabara de ser designada diretora do Centro de Saúde de uma vila tendencialmente urbana. Logo de início, fez sentir aos que consigo passariam a trabalhar ao que vinha. Na primeira reunião de trabalho, além das habituais apresentações, traçou um rumo que definiu prioridades e instituiu orientações muito precisas. Dizia ela que “o melhor é mantermo-nos fiéis à filosofia da linha. Enquanto andarmos na linha, tudo bem.
Se não, o comboio acabará por descarrilar”. Era um discurso muito determinado para uma profissional abada de chegar aos trinta.
Como os exemplos – bons ou maus – vêm sempre “de cima”, comunicou a todos a necessidade de cumprir horários, ter atitudes e comportamentos que, além de ajudarem a um bom ambiente de trabalho, estivessem incondicionalmente virados para os interesses dos utentes. As primeiras impressões dos “clientes” daquela unidade de saúde eram as melhores. Estavam notoriamente bem impressionados, surpreendidos até.
Nas primeiras semanas, trabalhou em parceria com uma dupla de anteriores responsáveis a fim de assegurar a normal transmissão de poderes. Ambos, a roçar os sessenta anos de existência, geriram os destinos daquele centro durante mais de vinte anos. Sentiam aquela nostalgia de quem está de partida, mas garantiam sentir a singular sorte dos que “ainda poderão chegar a gozar a reforma!” Palavras sábias.
O Dr. Gustavo e a Dr.ª Teresa encaravam estes novos tempos, estas consecutivas alterações de procedimentos e de lógicas de trabalho com estranheza, mas com a experimentada desconfiança dos que sempre afiançam, quando confrontados com o ocaso de um ciclo, a certeza de “o inferno estar cheio de gente bem-intencionada”. Às tantas, o povo começou a aperceber-se das melhorias e a estabelecer comparações com um passado duradouro, largando rasgados elogios “à Dr.ª Margarida. Com ela, isto está diferente”.
Concomitantemente, a nova diretora decretara o fim dos almoços e jantares para a Direção daquele Centro de Saúde, que eram invariavelmente extensivos aos respetivos cônjuges, à custa do orçamento privativo dos serviços. As atividades culturais e recreativas, até então tidas por naturais e imprescindíveis ao “bom ambiente” haviam então sido reduzidas a realizações com carácter vincadamente simbólico, pagas por todos e cada um dos interessados. Contudo e sem se aperceber, Margarida estava a afrontar interesses ainda instalados, que, lá no íntimo, encararam durante anos a fio aquela unidade de saúde como uma extensão da sua quinta pessoal, um esboço consistente de uma coutada privativa. Simplesmente, aqueles eram os rostos da “velha guarda”, uma caquética sociedade secreta, sempre pronta a reconhecer os seus “amigos”, usuários habituais – e por isso defensores – das suas “piquenas ilegalidades”.
Iniciaram-se as conversas de corredor, as intrigas e o veneno anda a ser inoculado com a facilidade de um contágio por via aérea. O Dr. Gustavo e a Dr.ª Teresa estavam, mesmo de saída, a urdir um conjunto de ataques rasteiros. No essencial, não arrasavam o trabalho da jovem sucessora.
Nada disso. Decidiram lançar boatos e rumores de que maltrataria o seu filho de 3 anos, que seria esposa muito pouco dedicada e que no bairro onde residia era mal vista pelos vizinhos que, segundo relatos tão credíveis, mantinha discussões “do arco-da-velha”, que toda a gente ouvia tal “era o tom das vergonhas”.
Um dos funcionários, indignado com tão despudorado fel, decidiu contar a Margarida o que escutara. Tendo há algum tempo pressentido tão refinada resistência, a determinada diretora não fora apanhada de surpresa. Tratara-se apenas de uma confirmação. Os antigos “gestores” viram finalmente os seus nomes no Diário da República. Estavam formalmente aposentados.
Ao contrário do expectável, os cidadãos Gustavo e Teresa, estando agora fora e com a possibilidade de gozarem a ansiada reforma, queriam estar dentro. Viviam intensamente todas as ocorrências passadas no “seu” Centro de Saúde. Até criaram e mantiveram saudosos “pontos de contacto”, que tudo lhes contavam. Haviam prometido que “lhe (à Dr.ª. Margarida) fariam a vida negra!”
Sem resultados práticos, forjaram uma carta anónima, pejada de erros ortográficos para disfarçar, não fossem alguns traços gráficos ostensivamente peculiares. Como não sabiam de computadores – uma “ciência oculta” – recorreram à sua caligrafia. Margarida constara o óbvio. Aqueles dois, mesmo instigando e escrevendo, em representação de algumas funcionárias (ainda) pesarosas com a transformação encetada, sistemáticos requerimentos sobre isto e aquilo, estavam obcecados não consigo, mas com tudo aquilo que ela representava: a mudança, a novidade e a inevitabilidade de todos se prepararem ara, um dia, abandonarem algo, que por muito tempo, pensaram ser seu ao ponto e ousarem presumir que ninguém faria melhor que eles.
Perseverante, continua hoje o seu trabalho. Tem evoluído e ganho enriquecedora experiência. Sabe não poder controlar o que outros decidem pensar a seu respeito. A seu favor, tem o trabalho que é consensualmente reconhecido. No mais, para quem sabe esperar, tudo vem a tempo.
Xavier Junqueira tem agora 35 anos. Prostrado no lancil de uma concorrida calçada, cravada numa cidade inundada de vultos inquietos, lembra o quarto que mantinha, com exemplar brio, quando os 14 anos de idade ainda lhe permitiam ter o peluche oferecido pela madrinha. Viaja no tempo. Recorda os persistentes, mas agora tontos conselhos do mãe: ”não fales com pessoas que bebem ou fumem! Essa gente só traz desgraças...”
Rumo ao passado, os seus olhos ganham um brilho menineiro quando é tocado pelo cheiro da escola. Foi desde cedo acompanhado por um frustrado explicador, que à noitinha o ajudava a perceber o emaranhado de frases e gravuras esguichados pelos livros. Lembra, com nostalgia, a pasteleira (vulgo bicicleta) deixada pelo avô paterno em que se fazia transportar para, fizesse chuva ou sol, chegar à casa do senhor Afonso, o “descodificador de livros”.
Mais tarde, e porque os pais tinham horários desencontrados na fábrica, o imperturbável explicador decidiu, num rasgo de imprevista humanidade, permitir que Xavier almoçasse em sua casa para, “ao menos, garantir ao miúdo uma refeição quente”. Apesar de agradecidos, os pais nunca souberam da mágoa infligida ao seu filho sob a forma de humilhação diária: a sisuda família de acolhimento almoçava na sala enquanto Xavier comia, sozinho, na cozinha. Se precisasse de um guardanapo de papel ou de mais um copinho de água, tinha de berrar, em jeito de rogo desesperado, por uma sempre tardia atenção.
Porque não chegou a ter notas suficientemente altas, o clã Junqueira não enjeitou o ensejo de lhe impor o jugo da frustração. Não seria com ele que passariam a ter finalmente “um doutor na família”. Supremo desgosto! Fizeram-no sentir a mais.
Foi tratado como um pária, “uma lesma sem futuro” - diziam. Não resistiu. Cedeu a um desgosto que não chegou a ser realmente seu, mas que o esgaçou sem apelo nem agravo.
Entregue à rua, as suas prioridades passam hoje por descobrir bons nacos de papelão, aceder ao chocolate quente dos voluntários da urbe ou “herdar” roçados cobertores que já cobriram camas feitas de memória curta. Nos bancos dos jardins, forrados com folhas secas, também elas perdidas e caídas, encontra o aconchego que logra igualmente alcançar perto dos átrios dos grandes prédios ou de hospitais indiferentes.
Afastado pelos olhares acelerados dos que têm medo de se reverem no infortúnio dos outros - não vá ser contagioso... - aprecia o ocaso da claridade. Caiu a noite e pela cidade ressoa uma desgarrada sinfonia de sirenes onde só ouvidos experimentados destrinçam as ambulâncias das viaturas policiais. De cigarro na mão esquerda, preso entre dois dedos amarelecidos, com unhas encardidas pelo tabaco, sobressaem exóticas pulseiras que vem acumulando neste degredo sem carcereiro visível. Na face, a pela esticada realça um rosto encovado pelas recentes e picadas agruras. Trémulo, inibe-se de mostrar uma dentição feita de espaços e de um consentido musgo entranhado até ao tutano das gengivas.
Agora vai ter a sorte de dormir. O sono é um analgésico barato, mas ainda assim eficaz. Acaba de passar uma daquelas ambulâncias amarelas que habitualmente testemunham os derradeiros suspiros de outros congéneres. Regressou um estranho, mas compreensível silêncio. Afinal, os monstros de betão também adormecem.
Ao luar, Xavier experimenta o privilégio de sonhar. Sonhar faz-nos sentir gente, gente que sente. Apesar da fragilidade do papelão que o ampara, ironicamente inscrita por uma qualquer marca de frigoríficos, o malogrado ex-futuro doutor recusa hipotecar a direito de se sentir gente como... nós.
POEMINHA DO CONTRA
"Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!"
MARIO QUINTANA
in "PROSA E VERSO" - 1978.
"Há três tipos de mentira:
a pequena,
a cabeluda
e a estatística."
Ariano Suassuna