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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (I) - Portugal, o país das laranjas.

03.01.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem freepik

 

Diogo brincava numa das ruas de Alte, freguesia de Loulé, no Algarve, naquele início de tarde acariciado por um sol abundante, que mais parecia uma bênção ao novo ano acabadinho de inaugurar. Embrenhado num imaginário que só ele domina, qual rei de uma terra ainda por conhecer, sentia-se experimentar o mistério escondido em cada brinquedo deixado naquela enrugada bota, estrategicamente amparada por mais um assombroso pinheiro que apenas o avô logra desencantar.

Apesar de sentir-se longe do bulício de uma destas cidades que nunca dorme, o seu grande palco durante o resto do ano, Diogo, mais do que estranhamente adaptado à ausência temporária dos amigos mais próximos, cúmplices incondicionais de aventuras mil, julga-se capaz de centrar um mundo inteiro naquela soleira onde só ele tece os destinos dos universos ali reunidos.

Num desses portentosos momentos, pressente a chegada do avô Ferreira. A passada constante e destemida da sua pasteleira, bicicleta impecavelmente mantida, não deixa dúvidas. As peças, as cores, os traços e o brilho dos cromados confirmam a chegada da única pessoa que alguma vez conheceu de mola na bainha direita das calças para a proteger da corrente bem oleada. Hoje, um saco de laranjas iria espoletar uma conversa inesperadamente reveladora.

- Ó rapaz, queres provar destas laranjas? – pergunta o avô naquele tom de voz que o parece reconhecer por igual.

- Já acabaram os chocolates?! – retorquiu o petiz sem disfarçar o desencanto inicial com a proposta.

- Diogo – chama o avô abrindo o saco das formosas laranjas – o que tenho aqui é mais importante do que possas pensar! – preveniu, enigmático, para logo se sentar no degrau da porta.

- Porquê? São feitas de ouro ou têm poderes mágicos?... – inquiriu Diogo, esperançado ao ponto de suspender as brincadeiras em curso.

O homem da pasteleira parece inspirar com a resolução de quem se apresta para contar uma daquelas histórias fascinantes, mas ainda desconhecidas.

- Ficas a saber que Portugal é o país das laranjas. Há quem diga que veio da Ásia, mas ainda hoje não se sabe ao certo. Na China já se falava da laranja dois mil anos antes do nascimento de Cristo!

 - Ui! Isso é bué de tempo…

- Bebé? Quem falou em bebé?! Toma é atenção ao que te digo para, quando chegares à tua escola, poderes contar à tua professora. Vai dar uma bela redação!

Diogo percebe que o avô não compreendeu aquela expressão que os meninos na cidade usam desde… que nasceram. Por isso, não interrompe.

- Li num daqueles almanaques deixados na taverna do Silvino – prossegue o mais velho – que a laranja veio das Américas para a Europa na altura dos Descobrimentos. Sabes, no tempo em que este país dava cartas… - complementou com indisfarçável frustração. Sem se deter:

- O Brasil chegou a ser o maior produtor de laranjas do mundo. Cultivam muita laranja. As laranjas têm lá muitos tamanhos, cores e sabores.

- Mas porque é que Portugal é o país das laranjas? Estás a falar do Brasil… - constatou, inquieto, o mais novo.

- Não tens paciência nenhuma! – responde acossado o avô para logo de seguida satisfazer a curiosidade do pequeno – A palavra “Portugal” pode ter outro significado em outros países. Em romeno, laranja diz-se portocálâ, em búlgaro portokal’, em grego portokáli e em turco portokal.

- Então, nesses países, nós somos laranjas?! – reage Diogo com espanto.

- E não é só na Europa. Na língua de países como o Irão ou o Afeganistão e falada em países como a Arménia, a Geórgia ou o Iraque, a palavra Portugal significa laranja. Lê-se: porteqal.

As revelações sucediam-se. O avô Ferreira parecia um especialista daqueles que falam nos telejornais. De perninhas à chinês, Diogo bebia cada novidade com a preocupação de não se esquecer de nada que pudesse tornar a tal redação verdadeiramente sensacional.

- Olha – avisou este avô ao mesmo tempo que se levantava sacudindo as calças – até te vou dizer mais: em árabe, uma língua falada em cerca de vinte países como o Egipto, a Líbia ou a Arábia Saudita, com quase trezentos milhões de pessoas, a palavra portugal lê-se: bortuqal ou burtuqálum e também quer dizer laranja! – sentenciou em beleza como quem remata um discurso feito por aqueles senhores da política antes das eleições.

Diogo estava atordoado. Decidiu sacar uma das laranjas oferecidas pelo avô e arrumou o seu mundo para dentro de casa. Estava decidido. A redação sobre a laranja tinha de ser feita. Ia arrasar quando a lesse em voz alta, na sala, para a turma. Tempo apenas para deixar um derradeiro alerta:

- Avô, tira a mola das calças!...

José Manuel Alho