Crónicas com tradição (II) - O laranjal da Gracinda.
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Na tasca da Gracinda, verdadeira instituição que já acolheu todo o tipo de tertúlias em Setúbal, ao ponto marcar consecutivas gerações que só a memória local cinzelou no imaginário popular, o final de tarde convoca novos e velhos para o ritual que antecede a “janta com a patroa”.
Ao sabor do tinto vertido nas rústicas tigelas de barro, qual néctar que só as terras do Sado distinguem celebrizando uma casta sem igual, as conversas giram em torno da Pedra Furada, há anos integrada no Museu Nacional de História Natural. O “velho rochedo”, como lhe chamou o pároco local, bem saliente naquele solo arenoso com os seus dezoito metros de altura, a curta distância da estrada da Graça, é afamado entre os anciões. Hoje, ouvem-se, entre roucas interjeições de espanto, mais um par de histórias, que misturam lendas e tradições capazes de seduzir o espírito mais experimentado.
Gracinda, que enviuvou no último verão, parece absorvida pela barulhenta rotina que vai crescendo com o anoitecer. No seu íntimo, vai urdindo planos para estes dias de sol que janeiro tem reservado. Do pensamento não lhe sai o laranjal de que tanto se orgulha. Mima aquele terreno como quem guarda um baú apinhado de recordações, invariavelmente partilhados com o companheiro que se finou sem aviso prévio, vítima de um súbito ataque cardíaco. Quando lá está, até parece que fala com o marido e, por horas, regressa a uma normalidade que sabe já não existir.
Quando o “ti” António, já vergado por uns bons pares de tigelas, insiste em novo abastecimento, Gracinda ergue os olhos com aquele fitar reprovador que dispensa quaisquer palavras e congela novas investidas. Nesse momento, irrompe pela casa o “novo-rico”, como o batizou o falecido. Trata-se do João Fazenda, o empreiteiro que comprou metade das terras em redor.
- Dá-me um tinto! – pediu ele sem qualquer saudação aos presentes, que parecem ignorá-lo.
A dona do estabelecimento acede ao pedido, mas pressente que a razão que o trouxe ali estará longe da inocência da restante clientela. Há um bom par de anos que insiste em comprar o terreno onde prospera o laranjal de Gracinda. As ofertas até já atingiram cifras generosas, mas há legados e “piquenos” tesouros que, para ela, não se vendem. Além do mais, tinha feito um pacto com o marido de que nenhum dos dois aceitaria prescindir da primeira terra que lograram comprar com as suas primeiras economias. E não vai ser ela a quebrar o acordo.
- Sabes Gracinda – começa, acanhado, o homem – venho ver se já pensaste bem na última proposta que te fiz…
- Já sabes a minha resposta. Não voltemos a essa conversa. – propõe ela com a intenção de ali matar o assunto.
- Arre, mulher! Não percebo esse teu orgulho. Não estás a ir para nova e este dinheiro era suficiente para te der uma velhice d’ouro, sem canseiras. Pensa bem. – insiste, num tom de rogo mais amansado.
Gracinda não quer prescindir da sua intimidade. Não vai revelar as razões que a manterão fiel depositária da promessa combinada com a sua alma gémea. No meio daquele sentimento de urgência, própria de quem quer apagar o fogo daquela insistência, a viúva decide refugiar-se no conhecimento que tem das laranjas para saciar a teimosia de João Fazenda.
- Ó João – inicia ela a operação com que pretende encerrar o assunto – as laranjas dão-me muito dinheiro. Há muita gente a comprar. É uma fruta que agrada a toda a gente, ao rico e ao pobre. E sabes porquê?!
- …
- Nesta altura do ano, ataca as gripes e constipações. No verão, ajuda as senhoras a manter o peso para não perderem a elegância. E não te esqueças que ataca o reumatismo e a gota. O doutor Agostinho já me disse que fortalece os ossos, os dentes e faz bem às gengivas. Fica tu sabendo que as pessoas que comem laranja estão mais protegidas das inflamações e de alguns cancros. Até as feridas cicatrizam mais depressa!
O persistente empreiteiro parece, por ora, vencido pelos argumentos que o próprio desconhecia. Inclusivamente, momentos houve em que pensou dedicar-se ao comércio das laranjas. Ainda que momentaneamente embriagado com tanta informação, aproveita para dar um derradeiro gole na tigela para de seguida concluir:
- Já estou a ver que hoje não estás virada para esta conversa. Tenho de ir.
- Vai lá. Não te esqueças: come laranja que até conserva a mocidade. – interpõe a taverneira.
- Até amanhã. Vou ver se durmo, pois, há dias que passo as noites em claro… – lamentou-se dirigindo-se para a saída.
- Não digas?! Uma colher de flor de laranja numa xícara de água quente mata essa insónia… - garante ela com um sorriso matreiro, carregado de ironia.
José Manuel Alho