Crónicas com tradição (III) - A Alheira de Mirandela contra ventos e marés
Foto retirada daqui
De volta à quinta que serviu de palco à sua infância, em Bouça, Mirandela, cravada entre os miradouros de São Sebastião e do Senhor do Repouso, Humberto recorda, exaurido por uma saudade que lhe esgaça as entranhas, a sabedoria serena de seu pai, o «rijo de São Sebastião», assim celebrizado por ser o cabecilha da romaria que anualmente sempre fez por cumprir, afrontando ventos e marés.
Com pouco mais de sete centenas de habitantes, Bouça é o seu berço. Ainda puto curioso pelos inusitados encantos dos gaios, que sempre se sobrepuseram ao fascínio popular das mil e uma histórias, envolvendo javalis, coelhos, raposas, águias e falcões, perpetuadas pelos anciões tementes à Senhora da Assunção, a padroeira da freguesia, foi aquela relação de pertença, indisfarçavelmente telúrica, que sempre animou o desejo de ali voltar para honrar as suas raízes.
Um regresso precoce para acompanhar o pai na sua derradeira agonia. De relações cortadas por não suportar as incessantes pressões paternas para que assumisse a liderança da «Quinta d’Assunção», propriedade esmagadoramente infinita e singularizada pelos seus emblemáticos pinhais, cerejais, olivais, soutos e vinhas, Humberto chama à memória os passeios matinais sob o murmúrio alternado, mas puro das ribeiras do Codeçal, da Muralha e dos Bufos. O cheiro daquela terra devotamente revirada por gerações de antepassados, misturada com aquela humidade que tudo cobria qual manto luzidio é, afinal, uma pintura delicada e suavemente aclarada a pastel seco.
Por ironia de um destino que alguém escreve, o «rijo de São Sebastião», muito por culpa das mais de sete décadas de vida, sucumbira à percentagem marginal dos que se vergam ao Síndrome de Guillain-Barré. Tratou-se de uma inflamação que bloqueou a passagem do estímulo nervoso. Em recomendável economia de palavras, o cérebro dava a ordem, mas ela não chegava aos músculos. Com incapacidade muscular, mas com pouca ou nenhuma diminuição da sensibilidade, Humberto percebeu o degredo final do homem que aprendera a admirar com sábia discrição. Mesmo quando, num par de dias, a doença começou a subir e a tomar outros grupos musculares progredindo até à parte superior do corpo, afetando seriamente os músculos respiratórios e da face, deixando-o em dificuldade para respirar, engolir e manter as vias aéreas abertas, aquele vulto, outrora indomável, parecia balbuciar os rogos que nunca convenceram o descendente. Aprisionado ao seu próprio corpo, num esforço sobre-humano, ilustrando uma luta desigual contra a paralisia generalizada que até – pasme-se! – lhe retirou a capacidade de suar, o pai ameaçava esboçar raros movimentos que só uma alma animada por uma estranha missão lograria denunciar. A mensagem estava lá. «Eu vou. Mas tu ficas. Continua aqui!»
Volvidas três semanas sobre o doloroso transe, Humberto dá-se às coisas, aos espaços, aos objetos e, sentado na roçada cadeira do falecido, sancionando um fim de tarde aumentado pelas virtudes de fevereiro, lê atentamente os apontamentos de quem tudo registava com recurso a uma caligrafia cuidada, num itálico a fazer lembrar o rigor austero dos copistas. Nesta passagem, o novo dono da «Quinta d’Assunção» detém-se neste esclarecedor trecho sobre a Alheira de Mirandela, que fará por imortalizar pelas vias contemporâneas:
“Foram os judeus que a inventaram como estratagema para fugirem às garras da Inquisição.
A religião deles não os deixava comer carne de porco. Como não tinham manha, eram muitas vezes descobertos por não fazerem nem fumarem os costumeiros enchidos de porco.
Por isso, trocavam a carne de porco por outras carnes - vitela, peru, coelho, galinha, pato e, por vezes, perdiz, enrolados por uma pasta de pão.
A receita até convenceu alguns cristãos, mas estes juntavam-lhe sempre carne de porco.
Nos dias que correm, as alheiras mais procuradas são as de Mirandela, mas já se fazem alheiras por toda a Beira Alta e Trás-os-Montes.
Não esquecer: as alheiras devem ser fritas em azeite e acompanhadas de legumes cozidos. Nada de modernices.”