Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (IV) - Foi você que nunca provou morcela de arroz?

21.02.24 | Servido por José Manuel Alho

ma.jpg

Imagem retirada daqui

 

Daniel, solteirão a caminho dos quarenta, vê-se ao espelho qual derradeira imagem para uma foto de perfil que possa, no mais ousado dos cenários por si engendrados, ser a de promoção de um filme em honra da morcela que tanto aprecia. Imune aos infindáveis trocadilhos oferecidos pelos ditames do enchido, engelha o sobrolho como quem fita uma qualquer candidata a alma gémea, aperaltando-se com o mesmo orgulho que assinalou a sua entronização como confrade da Morcela de Arroz da Alta Estremadura. São momentos de ingénua, mas intrépida glória.

Infelizmente, nem com essa promoção logrou pôr fim ao seu crescente degredo de macho por encaminhar, estigma que parece ser tema de conversa na pequena vila de Valado dos Frades, lá para os lados da Nazaré. Tem uma viagem pela frente. O Festival de Gastronomia de Leiria, com quase três centenas de comensais provenientes de outras confrarias, unidos pelo imperativo maior de honrarem a morcela que os anima – sejamos comedidos e deixemo-nos de pensamentos matreiros… - obriga-o a ensaiar uns quantos desbloqueadores de conversa que o ajudem em caso de emergência durante o festim que mais tarde decorrerá no Castelo de Leiria.

Daniel, “cioso membro da Confraria Gastronómica da Morcela de Arroz da Alta Estremadura”, assim se descreve na sua página do Facebook, está confiante e desta feita apruma-se com dois dedos de OldSpice, inequívoco sintoma de uma segurança inabalável.

Chegado ao destino, vê e revê o lugar por si ardilosamente conseguido para estacionar o Opel Corsa impecavelmente mantido desde 98. Ano louco aquele! Receia que, com o vento, o poste de iluminação possa ceder e atingir tão estimada viatura. Convicto que o pior não acontecerá, volta a confirmar se puxou o travão de mão e se a bagageira está mesmo trancada. Reencontra conhecidos que consigo partilharam a mesa em outras ocasiões. Saudações efusivas que o instigam a lembrar-se do nome daqueles com quem vai trocando palavras de circunstância. “Como se chama este gajo?...”, tortura-se insistentemente.

Ao longe, vislumbra o vulto de uma mulher que o deixa cativo. Em seu redor, tudo o mais parece ter deixado de existir. Os sentidos parecem estranhamente desligados para se concentrarem, como que por magia, naquele ser de olhar penetrante, com presença distinta e silhueta invejavelmente definida. Ao lado, alguém comenta: “o jornal da terra enviou para fazer a reportagem do Festival uma novata, que nunca provou morcela. Francamente. Haja respeito!”

Daniel sente-se impelido a entrar em missão. Não. Nunca sentiu apelos missionários, mas, “se é para bem da morcela - pensou ele para mascarar o seu instinto de marialva dobrado pelo instinto - digam que eu vou!” Impelido a honrar a morcela que há tanto faz por preservar – não voltemos a essas larachas, por favor! – caminhou resoluto rumo àquela mulher que ele pressente necessitar do seu conhecimento de experiência feito.

Sem as pieguices que a idade já não consente, este zeloso confrade, mais do que pedir desculpa por interromper a conversa até então em curso, atira secamente: “foi você que nunca provou morcela de arroz?”

Ela acena com um sorriso que confirma os piores receios de Daniel. O outro interlocutor, nitidamente atordoado com a manobra, abandona a cavaqueira e ficam a sós. Ele apresenta-se e disponibiliza-se para a iniciar no assunto que tanta gente para ali convocara. Inusitadamente agradada com a abordagem, Teresa concorda em deslocar-se para um canto mais reservado daquele endomingado salão.

Ela toca-o com a sua fragância que o deixa nos limites do desatino. Percorrido por um turbilhão ingovernável de pensamentos carnais, Daniel refugia-se na sua zona de conforto, dizendo-lhe que “tudo procede do ritual da matança do porco para fazer-se as morcelas, uma manifestação cultural que une saberes ancestrais.” Embalado, prossegue: “desde o chamuscar, a raspagem e lavagem do pelo, a pesagem, o retirar de tripas e versuras até ao desmanchar, tudo é festa.”

Não percebendo que Teresa está mais atenta ao que os seus olhos veem em detrimento dos ouvidos, opção que lhe permitiu constatar que ele não tem qualquer aliança ou vestígios de a ter ostentado no habilitado anelar, Daniel parece agora tomado pelo assunto que o leva a debitar ininterruptamente conhecimento enciclopédico:

- “Repare bem que estamos a falar de uma das iguarias mais características da Estremadura.
O sangue fresco do porco é condimentado com sal e pimenta e misturado com vinho tinto e vinagre. Junta-se carne entremeada de porco, cortada em partes miúdas, alho, cebola, salsa, cominhos e cravinhos e deixa-se marinar durante cerca de sete horas, mexendo de vez em quando é claro. O arroz, cozido à parte e escorrido, é então adicionado. Depois de muito bem lavadas e esfregadas com limão, enchem-se as tripas.
Podem ser servidas, após ligeiro cozimento em água caldeada, com sal, louro e cebola.” - afiança ele com o rigor de quem acaba de recitar uma bula medicamentosa.

Surpreendentemente aliciada por este imprevisto universo, ela permite-se, com premonitório arrojo, sugerir: “e se deixássemos esta agitação e aprofundássemos a matéria no restaurante d’”A Avó Alexandra” ao sabor de espetadas de Morcela de Arroz e Ananás com Feijão Preto?...”

Inexoravelmente arrebatado pelo repto da jornalista, Daniel entrega-se ao desafio com a inspiradora convicção de que se cumprira a profecia de a morcela, qual pêndulo divinatório, se ter alçado quando tocada por um destino enchido de ironia.