Crónicas com tradição (IX) - As conversas são como as cerejas
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O Padre Herculano conhece o Fundão com a fidelidade de quem sabe escrutinar as linhas das mãos. É da terra. Conhece o povo e os espaços como poucos. É um pensador militante que há muito compreendeu, qual Fernando Pessoa irado com a resignação amorfa das massas, que PENSAR incomoda como andar à chuva.
É, pois, com esta margem de credibilidade, concedida por décadas de sóbria coragem, que criticou a ação do atual Ministro da Educação na última conversa – pasme-se! - com um vereador afeto ao partido que sustenta o Governo, salientando a sua perplexidade quando enfatizou que “se destrói um país no momento em que se opta por aumentar os alunos por turma e diminuir o número de professores por escola”.
A tolerância a estes rasgos inquietos de liberdade foi conquistada com a serena sapiência de quem aconselha gerações desde o século passado. Além do mais, é um benfiquista inveterado, que nada faz por ocultar ou atenuar o seu fervor pelo clube da águia. É mesmo um visitante assíduo da casa do Benfica do Fundão.
Mas é a paixão pelas cerejas que, há muito, o arrebanhou para outras missões, de índole mais terrena. É um fiel embaixador da cereja da Cova da Beira, um dos símbolos maiores da região centro. Por ser carnuda e doce, com aquela coloração veemente que vai do vermelho vivo ao vermelho-púrpura, foi batizada pelo sacerdote de “ouro vermelho”, pois não ignora que, a partir de 1950, se constituiu fator de riqueza económica das populações que a instituíram o seu cultivo entre as Serras da Gardunha, Estrela e Malcata.
Não se deixou acometer por populismos demagógicos quando o disputado fruto vermelho, além de poder ser comido cru, ao natural ou em saladas de fruta, passou a ser cristalizado, em compotas ou até mesmo em bombons. É uma alma pragmática que cedo acomodou o impacto da sua comercialização por sempre ter sabido que a altitude, a exposição solar e o clima da região ajudariam a celebrizar a qualidade da cereja que ajuda a marcar o fim do Inverno e a anunciar a Primavera. Acima de tudo, compreende e defende uma atividade que sustenta as populações de uma área geográfica de aproximadamente 1374 quilómetros quadrados, abençoando os concelhos do Fundão, Covilhã e Belmonte.
Hoje prepara-se para mais uma reunião preparatória da Festa da Cereja que, em junho próximo, receberá quase trinta mil visitantes em Alcongosta, freguesia do concelho do Fundão. Da ordem dos trabalhos, constará a organização do périplo pelas mais de sessenta tasquinhas, a visita aos pomares e do passeio motard, organizado pelo recém-criado grupo de motards que se elege como "Os trinca cerejas".
Sem aviso prévio, é intercetado por uma jovem professora de História que, a pretexto de um trabalho que está a desenvolver com os seus alunos, o confronta com a seguinte questão:
- Por que razão, ao longo dos últimos anos, tem-se assistido a um número crescente de jovens sacerdotes que recomeçaram a usar o hábito eclesiástico?
Sem se deixar intimidar pela acutilância da pergunta, o Padre Herculano enche o peito, expira com premonitória convicção e esclarece:
- Minha cara, o Código de Direito Canónico afirma qualquer coisa do género: "Os clérigos usem trajo eclesiástico conveniente, segundo as normas estabelecidas pela Conferência Episcopal, e segundo os legítimos costumes dos lugares". O que acaba de constatar vai de encontro ao entendimento da Conferência Episcopal Portuguesa que determina aos sacerdotes o uso de “um trajo digno e simples de acordo com a sua missão”. Sabe, nós temos de estar permanentemente identificados como sacerdotes. E essa identificação é habitualmente feita pelo uso de batina ou do fato preto com cabeção.
A professora, segura da réplica do interlocutor, atira:
- Ó Padre Herculano, não seria melhor que os sacerdotes fossem antes de tudo reconhecidos pelo seu comportamento do que propriamente pelo vestir?...
O temente servidor de Deus sente-se, ao contrário do que se poderia esperar, estimulado a manter a dialética e liberta:
- Talvez tenha razão. Por vezes, nos meus colegas mais novos, o recurso à farda poderá advir da necessidade de afirmação e procura de estatuto, quem sabe de uma certa noção carreirista ou até mesmo duma visão do sacerdócio bastante intransigente ou, em grande em parte, de uma eventual insegurança interior...
A jovem docente sente-se inusitadamente desarmada e paralisa-se num silêncio inibidor perante semelhante franqueza. Ainda a refazer-se daquela resposta descomplexada, fica com a promessa do experimentado presbítero:
- Já diz o povo que “as conversas são como as cerejas”, um adágio que representa a ideia de “atrás de uma vêm as outras”. Isto é, depois de comer uma cereja é quase impossível resistir a outra. Por isso, temos de concluir esta conversa, mas agora tenho a reunião com o presidente da Junta de Freguesia para tratar da festa das verdadeiras cerejas!...