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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (VII) - Cabrito do Caramulo em tempo de partilhas

04.04.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem retirada daqui

António e Joaquim são irmãos que, na verdade, nunca experimentaram as cumplicidades da fraternidade devido a uma separação ocorrida na aurora das suas existências. As dificuldades financeiras de um casal de agricultores, teluricamente ligado ao Caramulo, obrigaram os pais a socorrerem-se de uma tia sossegadamente fixada na capital, que viu em António o filho que um casamento nunca realizado lhe poderia ter oferecido.

Joaquim, o mais velho, caminha agora para as sete décadas de vida, seguido de António a quatro anos de distância. A pretexto de um convívio a realizar, pela Confraria Gastronómica do Cabrito e da Serra do Caramulo, no último domingo deste mês, decidiram acertar vontades para se reencontrarem. Espera-se que o sol de abril ajude a enriquecer a mostra de sabores autóctones já publicitada, onde não falarão os vinhos do Dão, os licores e os doces confecionados com produtos locais.

Uma das principais ruas da terra estará fechada ao trânsito para ali se servirem as melhores amostras do Cabrito Assado no Forno que a Serra do Caramulo ajudou a celebrizar. Amostras que, a bem do saber perpetuado desde há longas gerações, terão de estar bem tostadinhas, acompanhadas de batata assada e arroz de miúdos feito com a fressura do cabrito, sem nunca esquecer os grelos salteados.

 A tia Rosa, por já não suportar as exigências de uma deslocação que até lhe poderia avivar memórias oportunamente exiladas nos confins de um coração apinhado de dilemas passados, optou por ficar em Lisboa. Os pais destes já se finaram, separados por escassos meses, no ano passado. Ao longo de todo este tempo, os dois irmãos precocemente desvinculados só muito raramente estiveram juntos. Nem os funerais dos progenitores os reuniram. No mais, os telefonemas de ocasião, em datas lembradas, ajudaram a manter um contacto timidamente cúmplice.

Desta feita, Joaquim impôs a si mesmo que fará uma receção que, pelo menos, ajude António a ter uma impressão bem diferente da terra onde foi parido. Na verdade, os comentários avinagrados da tia contribuíram para uma ideia enviesada da zona de Tondela, abraçada pelo distrito de Viseu. Para o efeito, recorreu aos préstimos de Francisco, membro ilustre da Confraria Gastronómica do Cabrito e da Serra do Caramulo.

Para desfeita do anfitrião, o irmão veio sozinho. A mulher e os filhos de António quedaram-se por Lisboa. Apesar de nenhuma explicação ter sido dada, Joaquim não se detém e apresenta o irmão ao confrade, impecavelmente envolvido por uma capa comprida de cor preta e uma outra castanha escura, de tecidos parecidos com burel, que é a substância de eleição com que se produz o traje típico da Serra do Caramulo, a Capucha. Ainda trajado com um chapéu preto de aba redonda, com uma fita castanha à sua volta, o exótico comparsa ostentava um medalhão em estanho com um fundo alusivo à Serra do Caramulo e, na frente, o busto de um cabrito.

Já dentro da viatura de Joaquim, o trio nem tem oportunidade para mais palavras de circunstância. O confrade, genuinamente cioso da sua missão, debita:

- Meu caro amigo, esta é uma zona de montanha de natureza granítica e xistosa. Sobre a flora, podemos dizer que predominam as urzes e a carqueja. Como daqui a pouco poderá constatar – cuidado com a curva Joaquim! - a serra é habitada por aldeias com casas e espigueiros em granito típicos desta região. Não esqueçamos que esta zona foi ocupada por romanos razão pela qual ainda se podem encontrar alguns sinais dessa época, como os trilhos de pedra.

De seguida, o condutor orgulhoso e feliz por ter tão perto de si o irmão com quem não cresceu, assegura, em jeito de convite, que “apreciar os campos verdes, a água cristalina dos ribeiros e a paisagem deslumbrante ao mesmo tempo que se respira um ar realmente puro é um prazer que não tem preço pá!”

Por seu turno, o irmão mais novo, sentindo o pequeno-almoço embrulhar-se com tão acidentado traçado, acena com um sorriso contido e distante, a roçar o enjoo. No périplo previamente definido, as horas que se seguiram serviram para falar do Caramulinho, o ponto mais alto da Serra com mais de mil e setecentos metros, onde se enxerga o mar, bem como do Cabeço da Neve, “de onde se pode ver em dias sem enevoamento a Serra da Estrela.” – assinalou o confrade.

Chegados ao Museu do Caramulo, cravado na vila do Caramulo e fundado nos anos cinquenta pelos irmãos Abel e João Lacerda, apreciaram a vasta coleção de obras de arte e automóveis ali patente. Num dos poucos momentos de arrebatamento, António deixa-se assombrar pelas obras ofertadas por colecionadores e artistas de renome como Pablo Picasso, Vieira da Silva, Salvador Dali e Jean Lurçat. Entretanto, as demais salas do museu, repletas de peças de ourivesaria, cerâmica, escultura, marfim, mobiliário, esmaltes, vidros e têxteis, logram remeter ao pasmo de um silêncio encantado o aparente forasteiro.

Pressionados pelo tempo, ensejo de ainda conhecerem a Reserva Botânica de Cambarinho, criada em 1971, na vertente norte da Serra do Caramulo, situada na povoação com o mesmo nome, na freguesia de Campia, concelho de Vouzela. Foi tempo de se deslumbrarem com a maior área de loendros da Europa, que pinta de roxo 24 hectares de solo. O confrade intervém de novo para frisar que “os loendros pertencem a uma espécie singular de crescimento espontâneo herdada do período geológico do Terciário.”

António, que nunca lograra ocultar uma certa incomodidade por razões até então incompreendidas para Joaquim, o anfitrião esforçadamente hospitaleiro, chama o irmão mais velho pelo braço enquanto o guia aproveita para atender o telemóvel. Visivelmente acossado por um desconforto finalmente insuportável, informa:

- A razão da minha vinda são as partilhas e o inventário que temos de fazer. Os nossos pais morreram. Temos de pensar em nós. Os meus rapazes estão no desemprego e… já sabes como são estas coisas. O dinheirito está a fazer falta a todos.

Joaquim parece ter levado um murro no estômago. Nem sabe o que pensar, quanto mais o que dizer. Ainda a refazer-se da investida, encaixa outro “gancho” do mano sempre protegido:

- Não vou poder ficar para o convívio do cabrito assado. Pedia-te que nos sentássemos à mesa para tratar destes assuntos. Tenho de estar em Lisboa antes do anoitecer. Sei que entendes…

De mãos já nos bolsos, chutando algumas pedras e de cabeça baixa, Joaquim sente-se impelido a honrar, uma vez mais, a memória e aquilo que pensa ser a vontade dos pais pelo que também não será desta que irá “cortar as pernas” ao seu único irmão. Optará por relegar-se para um plano secundário bem ao jeito dos que aceitam anular-se pela família:

- Muito bem. Não há problema. Gostaria muito de ficar com a casa dos nossos pais. Diz-me quanto queres pela tua parte?