Crónicas com tradição (VIII) - É tempo de preparar o “Cozido da Liberdade”
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César, que fez quase toda a sua vida na capital, essa metrópole que também ajudou a libertar, está de regresso à sua terra natal: Murça. É um murcense dos pés à cabeça, que prepara o próximo 8 de maio, feriado municipal, com acrescido aprumo.
Conhece as nove freguesias do concelho como as palmas das suas mãos. Embora a maioria dos “camaradas de partido” que conheceu nunca se tenham distinguido pelas tendências vincadamente religiosas, é um fiel devoto do Senhor dos Aflitos, de S. Tiago e da Rainha Santa Isabel, romarias da terra que cedo marcaram o seu imaginário de menino e moço.
Ainda hoje não sabe ao certo como foi tocado pelo imperativo de se juntar “à luta” para, como incessantemente lembra, “derrubar o fascismo e devolver o pão ao povo”. Não testemunhou a morte dos pais que, como ele, faziam jus às palavras de Miguel Torga: "São homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra". Gente pobre para quem o Marão sempre significou a derradeira, mas intransponível barreira para um mundo desconhecido por muitos.
Um dos passatempos preferidos é fotografar as singularidades daquele naco de país pejado de contrastes de clima, vegetação e culturas. Entrega-se à contemplação das vinhas e dos olivais com o pasmo essencial de quem os mira pela primeira vez recorrendo ao arrojo de quem, cedo de mais, aprendeu a ver sem ser visto. E é nesse silêncio preenchido que muitas vezes ignora o passar do tempo, prazer descuidado tantas vezes apontado por Aurora, a companheira que arrebanhou para a vida logo nos primeiros anos de sobrevivência lisboeta.
Foram ambos perseguidos políticos, que fizeram da clandestinidade um sofrido modo de vida. Acumularam histórias de madrugadas sobressaltadas por investidas da PIDE, ao som de calejados pés-de-cabra. Ostentam o sofrimento de terem sido separados pela prisão. César esteve quatro anos entregue aos cuidados da cadeia do Aljube onde aprendeu a conhecer os amargos encantos disponibilizados pelo famoso segundo andar. Tudo conheceu. Espancamentos, choques elétricos, tortura do sono…
Com inusitado encanto, recorda em muitas tertúlias a tarde em que, no rés-do-chão daquele parlatório vigiado por um intrometido agente da polícia, pediu Aurora em casamento. Em poucos meses, tudo foi conseguido. Nesse dia, só entraram as testemunhas e os padrinhos de casamento. À espera de todos, uma mesa e duas garrafas de vinho. “Um mimo!” – remata com orgulhosa ironia.
Por razões que a História se encarregou de enriquecer, abril é um mês extraordinariamente importante para César, um cozinheiro de predicados firmados. Começaram os preparativos do “Cozido da Liberdade”, uma inocente derivação do Cozido à Portuguesa, a servir no há muito ansiado 8 de maio.
Um poderoso pretexto para reunir a família, principalmente as duas filhas de quem tiveram de se separar para, “com a ajuda do Partido”, darem continuidade “à luta”. Uma dor que lhes esgaçou as entranhas e que ainda hoje contornam com indisfarçável mágoa.
Da ementa farão parte as incontornáveis queijadas e o sempre reclamado toucinho-do-céu de Murça, uma incumbência exclusiva de Aurora.
Mas a atração será o cozido, com arroz de forno a acompanhar. César não esquecerá as couves da terra regadas com o melhor azeite de Murça. Importantes serão as carnes, que recrutará nos mais fiáveis produtores da zona. É uma preocupação que não descura. Será numa panela deixada pela mãe, que cozerá com água todas as carnes. As que forem salgadas deixará de molho umas boas horas. Com o saber de experiência feito, sabe que deverá tirar primeiro os enchidos, depois a carne de porco e galinha. Só no fim, depois de bem cozida, retirará a carne de vaca.
E, para já, são estes os pensamentos que lhe ocupam uma existência, apesar de tudo, credora de orgulho e fé no amanhã ainda e sempre por cumprir.