Crónicas com tradição (X) - Os mirtilos fazem (mesmo) bem
Imagem retirada daqui
Início de tarde. O calor aperta. António mira pela janela do seu vetusto ninho. A ambulância conduzida por Jaime, qual visita íntima, ainda não fez a sua aparição. Guiomar parece amarrada a um corpo que perdeu a exuberância sublimada por uma juventude que não conheceu espartilhos nem fronteiras. O acidente vascular cerebral logrou cingi-la a um conjunto de sons e movimentos trôpegos, que só a cumplicidade burilada ao longo de décadas adivinha.
De Couto Esteves, freguesia do concelho de Sever do Vouga, existe um casal que abraçou a nova rotina com a mesma submissão de quem nunca exigiu muito da vida. Um desprendimento que retrata um país difícil de lembrar, um tempo regido por outras vontades. Os olhos de António libertam aquela doçura que corre com a mesma fluidez do sangue transportado por veias salientes numa pele tingida por mil sóis, uma tatuagem vigorosamente perene da dureza imposta pela sapiência da terra e seus requintados caprichos.
Chegou a ambulância que os levará para hora e meia de fisioterapia. Sim. Ele também vai. Não deixará Guiomar entregue à solidão de gente e espaços até há pouco desconhecidos. Enfrentam, desde há mês e meio, uma provação mais dolorosa que as contrariedades impostas pelos humores da natureza que ousaram dizimar disputados cultivos e poupanças suadas. Sofrem os dois um mais que o outro, como que temendo ver numa eventual despedida o prenúncio de um outono dilacerante.
Jaime, o palavroso bombeiro, não se coíbe de se fazer sentir. Chegou. Finalmente. A ambulância parece conhecer-lhe os tiques de uma condução pretensiosa. Além do mais, fala alto. Percebe-se que Guiomar se sente incomodada. Mas a parelha prefere recolher-se à humildade de quem aceita que “isto é mesmo assim”. A submissão sempre foi a melhor forma de explorarem o mundo para além da sua casa e do pedaço de terra tão esmeradamente mantido.
Enquanto Guiomar, com a cabeça envolvida por um lenço descorado, mastiga saliva num esforço insano para pronunciar a mais fácil das sílabas, acentuado por uma óbvia falta de dentes, o marido tenta mascarar a situação da companheira metendo conversa com o estrepitoso soldado da paz. Jaime adora mirtilos. Num rasgo de coerência primária, é um dos elementos que ajuda a pôr de pé a Feira do Mirtilo, a ter lugar nos primeiros dias de julho. É um daqueles elementos que ninguém enjeita. Tem uma força braçal que vai escasseando nos dias de hoje.
Apesar de a proeminente barriga roçar o volante, o homem de vermelho é ágil. Há que reconhecê-lo. Do seu farto, mas bem regado bigode, sai conversa de interesse muito oscilante. Mas hoje deu-lhe para os mirtilos.
- O senhor António sabe que a televisão vem cá? Ouça, este ano vai ser uma Feira que o povo de Sever até se vai babar! – assegura ao mesmo tempo que acaricia o bigode com mal disfarçada vaidade.
Quase que não dando hipótese para retorquir, o bombeiro parece estar embalado:
- Não queira saber. Vai haver música, espetáculos com aqueles artistas que vemos nas cassetes e exposições de artesanato. Até já me falaram para ajudar a montar uns stands…
António ainda não percebeu esta recente paixão pelos mirtilos, mas fica contente com a animação que traz à terra que o viu nascer. Por isso, confessa:
- Nunca pensei que esta coisa dos mirtilos ficasse assim… com esta festa toda.
Sem se deter, Jaime continua a promoção:
- É mais importante do que a gente pensa. Aquilo é fruto que faz bem à saúde. A doutora da dona Guiomar ainda não lhe disse nada sobre…
- Sobre o quê?! – reage, perplexo, o acompanhante.
- Então você não sabe que o mirtilo é “o fruto da juventude”?! Você é de Sever e não sabe?! Olhe que ajuda a curar infeções e atrasa o envelhecimento do cérebro. Ela que comece a comê-los. Vai ver que faz bem.
António está surpreendido. Sente-se impelido a compensar o seu desconhecimento cedendo à investida do inusitado embaixador daquele fruto silvestre.
Ainda a refazer-se das novidades, escuta uma oferta que vai aquecer-lhe o coração:
- Senhor António, sabe que mais? Fique descansado pois vou ser eu que lhe vou arranjar um cestinho de mirtilos para a sua senhora ver se melhora. Depois fale comigo. – sentenciou em jeito de certeza bíblica.
O dia tinha sido diferente. A viagem trouxera, afinal, um raio de esperança a rostos engelhados por auroras nem sempre sorridentes. Com os três filhos emigrados na América, receberam este gesto de bondade com a já quase esquecida felicidade de uma criança que chorou por um gelado em dia de penosa canícula. Sentem-se mimados, com o conforto dos que não passam indiferentes aos olhos de terceiros.
Os mirtilos fazem (mesmo) bem.