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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (XIX) - Em casa, com a família

23.12.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem retirada daqui

O Natal está a chegar. A casa vai ganhando forma com uma indumentária singular. A atmosfera acumula os tons e os aromas que só este tempo traz com genuína autenticidade. Os netos chegaram. Por ora, acabaram as aulas e começou um merecido período de descanso.

Com os miúdos a correrem por toda a casa, constrangidos por uma chuva que impossibilita outras aventuras a céu aberto, tudo parece fazer sentido. Ao fundo, o zunido do mar abençoa este tão esperado quanto sentido (re)encontro familiar. Uma aguarela que se adivinha perfeita.

A sala de estar, palco privilegiado de tantas etapas que a família já enfrentou, dispõe-se a acolher a peça maior marcada para a noite de Consoada. Com as paredes revestidas a granito, a lareira, escurecida pelo rigor de outros Invernos, ameaça ser a atração em redor da qual desaguarão todas as histórias e historietas que assinalarão, qual prova de vida, o vigor daquela união familiar.

Depois de a árvore de Natal ter sido erguida e ornamentada por Fernando, o patriarca do clã Moura Bastos que nunca negligencia o presépio com o verde-musgo colhido nas fartas redondezas daquele refúgio, é tempo de Aurora entregar-se à doce tarefa de garantir que nenhum objeto decorativo falhará o momento. Tudo é religiosamente colocado no sítio de sempre porque através cada uma das peças se conta a história da família em suaves legendas, celebrizadas pela memória coletiva de consecutivas gerações. As mantas são dobradas com inigualável saber e o castanho velho da mobília aperalta-se para receber os gloriosos convivas para ali desde sempre convocados.

Abrem-se as portadas e correm-se as cortinas. Apesar da chuva que persiste em encharcar a vidraça, entra uma luz que inunda de vida um espaço nem sempre pejado de brilho.

Contando já com o apoio das três noras, que se acotovelam na conferência das mais recentes novidades e demais cusquices atreladas, Aurora aventura-se na difícil arte de as aliciar para os encantos da doçaria natalícia. Entre palpites e outras considerações a respeito das rabanadas, dos sonhos de cenoura, das broinhas e dos coscorões, nada parece afinal arrebanhar aquelas almas da grande urbe para a nobre arte açucarar este final de ano tão penosamente azedado por uma crise que a todos vai esganando.

Mas é o bacalhau que vai merecendo o consenso geral. O ruído quase histérico das mães não logra abafar a curiosidade de Dinis, o rapaz que em setembro passado ingressou no 4.º ano e já anda inquieto com o exame de abril próximo. Responsável e invulgarmente metódico, tenta sacar da avó informação que lhe permita enriquecer o texto que terá de redigir sobre a sua Consoada. Há muito que está curioso por saber “os porquês” de ser tradição comer bacalhau na Ceia de Natal. Aurora não descura o apetite do neto e revela o que sabe:

- Sim. Na ceia de Natal, manda a tradição portuguesa que se coma o bacalhau. Olha, a origem do consumo deste peixe já vem do tempo dos vikings. Há quem diga que foram eles que descobriram o bacalhau. Mas foi nas costas de Espanha que os bascos começaram a salgar o bacalhau e depois a secá-lo para uma melhor conservação. Este método garantia que se aguentasse por muito tempo assim como mantinha os seus nutrientes e apurava o paladar. Mil anos depois, o bacalhau passou a ser comercializado pelos bascos. E foi aí que se revolucionou a alimentação.
Na Idade Média, os cristãos começaram a consumir bacalhau. Sabes, os cristãos deviam obedecer a dias de jejum, o que levava as pessoas a porem de parte a carne da sua alimentação. O bacalhau, como era mais barato, tornou-se no alimento escolhido pelo povo durante as festas religiosas como o Natal e a Páscoa.
Com o passar dos séculos, o jejum foi desaparecendo, mas a tradição do bacalhau, sobretudo na ceia de Natal, manteve-se até aos nossos dias.
De início, era alimento barato e presente na mesa da população mais pobre. Depois da Segunda Guerra Mundial, o bacalhau tornou-se num peixe só consumido pelos mais ricos. A falta de alimentos em toda a Europa levou à subida de preço do bacalhau e o seu consumo limitou-se aos mais poderosos. Os mais pobres apenas se davam ao luxo de o consumir nas principais festas cristãs, o que também contribuiu para a tradição do seu consumo na Ceia de Natal. Percebes agora?! – concluiu com pachorrenta disponibilidade.

Dinis, receoso de esbanjar tão preciosa informação, esgueirou-se para o seu novo quarto onde se apressou a registar o essencial da explicação veiculada pela avó Aurora.

Entretanto, a matriarca decide-se a pôr termo à indefinição até então reinante entre as noras e larga com cirúrgico pragmatismo:

- Meninas, quem vai afinal fazer o quê?...