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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Crónicas com tradição (XV) - Soltou-se o Cão…

07.10.24 | Servido por José Manuel Alho

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Imagem Freepik | meramente ilustrativa

Louco. Irascível. Temperamental. Surpreendente. César, um imperador entre compositores de música romântica, está literalmente absorvido pelos ditames da sua mais última encomenda. Sente-se inquieto. Os amarelados dedos da sua mão direita perderam a conta aos cigarros empunhados nos últimos dias na busca de uma inspiração momentaneamente sequestrada por uma rotina até então mais ociosa que o presumido.

Pela frente, um novo álbum para uma cantora de renome, sequiosa de homenagear as suas raízes de mulher do Douro. Foi perto da bacia hidrográfica daquele rio, portentosa manifestação da natureza que percorre mais de novecentos quilómetros desde a nascente nos Picos de Urbión, em Espanha, até à cidade do Porto, que a cliente bebeu a ambição de “um dia” alcançar a fama e o reconhecimento.

César, de tão consumido pela ausência de qualquer rasgo criativo que corresponda às telúricas expectativas da freguesa, decide arrendar casa na região. Acolhendo sugestão de um velho amigo, preferiu uma casa rústica, em granito e madeira - materiais da região - mas com todas as comodidades dos modernos refúgios. Foi no alpendre, com forno de lenha tradicional e piscina, bem perto de um jardim preenchido de recantos, que ordenou - aos berros de “não me f**** a relíquia!” - a colocação do seu admirável piano de cauda. Naquele instrumento de cordas repousam a história, o fabrico artesanal e a linhagem de desempenho que tanto procurou quando decidiu não resistir à loucura de o comprar por uns bons milhares de euros.

Escolheu aquele por ter o teclado de marfim, que melhor absorve o suor dos dedos e, assevera,”é mais suave ao toque em relação aos seus substitutos à base de polímetros”. Com o tempo, o marfim das teclas ficou amarelado. “Que se dane! – atirou em resposta quando confrontado por um par com aquela inevitabilidade, que – para cúmulo - também o esclareceu da proibição de utilização do marfim nos teclados já desde a década de oitenta. “F****-se todos!”, disparou incessantemente, com desabrida indiferença.

César acusou a necessidade experimentar o cheiro, a luz e a personalidade daquele punhado de natureza. Pagou a um experimentado produtor de vinho que o guiasse numa visita todo-o-terreno pelo meio daquelas regiões vinícolas, enfrentando com insolente espírito venturoso os seus vales íngremes e os cachões estreitos e selvagens.

Pressentiu naqueles solos derivados de xisto, naquela formação geológica de essência granítica, a dureza celebrizada pela sabedoria popular que garante “9 meses de Inverno e 3 meses de Inferno”.

Uma semana chegou para vislumbrar a singularidade de primeira região demarcada do mundo. Está exausto e nada lhe ocorre.

Mas foi nestes dias que se tornou um apreciador insaciável de uma casta que tem logrado ameaçar os seus equilíbrios. Encantou-se pelo “Esgana Cão” - um dos nomes da uva cerceal - uma casta que produz um mosto de vincada acidez e com elevado teor alcoólico.

Ontem, à medida que novas caixas foram chegando e as garrafas vazias se amontoaram, a linguagem arrastada foi balbuciando letras inusitadamente melódicas e o solto dedilhar das teclas de marfim fez o resto. Em pouco mais de oito horas sem qualquer tipo de pausa, grande parte da empreitada estava já em velocidade de cruzeiro.

Soltou-se o cão outrora esganado…