Uma crónica | A grandeza da vida a cada amanhecer
Acabada de entrar no carro, Ana agarra-se ao volante como que rogando a alguém que a beliscasse. Sim, acabara de escutar uma sentença de morte. João, o segundo marido de uma vida nem sempre linear, irá mesmo morrer. Tem um tumor cerebral inoperável, que lhe roubará, com uma certeza precocemente trágica, a mobilidade e a lucidez. Deixará de ser quem é para logo depois deixar simplesmente de existir.
João é um homem ativo. A eletricidade já não lhe reserva qualquer segredo. Habituado a deslocar-se ao estrangeiro para se aperfeiçoar profissionalmente, é um ser mais cosmopolita do que o comum dos seus pares. Desde que os lapsos de memória, aliados a dificuldades de orientação, o obrigaram a realizar uma extensa bateria de exames intuiu que algo poderia não estar bem. A primeira reação do seu médico de família, excecionalmente contida, conduziram-no a uma conclusão que logo partilhou com Ana: “o médico não diz nada. Mas ele deve saber de alguma coisa…”
Tomado por um pessimismo galopante, massacrou-se de dúvidas. Receios antigos, que davam conta de uma morte prematura, toldaram-lhe o discernimento. Uma conhecida procissão de fantasmas começou então condicioná-lo no seu relacionamento com os outros.
Tem uma filha que é a maçã dos seus olhos. Francisca é o pincel que lhe pinta a vida a traços muito finos, mas poderosamente coloridos. Com rendimentos merecidamente elevados, tem proporcionado momentos únicos à família. Viagens à Disneylândia, entre outros mimos improváveis em tempos de crise generalizada, obrigam os olhos mais distantes a conceder-lhe o título de invejável chefe de família, que faz e dá o melhor pelos seus. Vizinhos há a concluir, sem grandes rodeios, que “é um escravo do trabalho”, “uma máquina de fazer dinheiro”.
Entretanto, com os exames médicos deliberadamente exilados no banco traseiro, Ana é uma mulher momentaneamente entregue aos cuidados de um “piloto automático”. Todos nós, quando confrontados com factos tragicamente arrasadores, sabemos funcionar com uma naturalidade atroz por algum tempo. Temos atitudes e comportamentos, dos quais até teremos dificuldade em lembrarmo-nos ulteriormente, que atestam a racionalidade mecanizada de qualquer mortal.
Chegada a casa, a tez esbranquiçada prenuncia um regresso iminente à realidade. João, que há muito sabia ser aquele o dia da revelação, percebe no olhar comprometido e fugidio de Ana a inevitabilidade do pior. Sem querer acentuar o doloroso incómodo dela, João atira: “E agora, amor? Agora que tudo vai acabar...”
O silêncio daquela mulher, com a franja humedecida de pânico, é esmagador. Naquele instante, a campainha toca. É o cunhado de João que sabia ser dia de notícias. Num tom refinadamente humano, indaga junto do prezado familiar: “Como está o mundo a tratar-te?”
João, agora confirmado como protagonista de um drama que o matará, opta por responder com imprevista fleuma: “nunca mais nos vimos desde que o Benfica foi campeão…”
Esta inadvertida visita deu a Ana a possibilidade de recompor-se. Contudo, não sabe o que responder. “E agora?!” – repetia ela vezes sem parar.
Agora é ter a capacidade de perceber a grandeza da sua existência a cada amanhecer. Todos estamos afinal condenados a exercer o direito de viver. João já conquistou o pódio da vida. Agora vai ter de aprender a desfrutar do prazer de a sentir. O espaço de tempo entre o nascimento e a morte é tão breve como a aurora e o ocaso. Por estar vivo, vai agora preocupar-se em ter tempo para se ouvir e falar de si.
Tudo fará para não ser carrasco de si mesmo.