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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | A morte de um bom rapaz (*)

22.03.25 | Servido por José Manuel Alho

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Frederico bebe o derradeiro gole de café antes de calçar as luvas e enterrar até às orelhas o farfalhudo mas honrado barrete conquistado pela participação do 12.º Concurso de Pesca promovido pel”Os Zangões”, a agremiação lá do bairro que ainda se digna contemplar os seus associados com um desconto de 1,50 €uros na inscrição em tão prestigiado torneio. Hoje, começa mais uma semana de trabalho e o nosso jovem, a caminho dos vinte e nove anos, solteiro por opção de terceiros – antes duas semanas do casamento, Lídia, a sua indisputável noiva, decidiu acompanhar Raul, o motoqueiro garanhão da rua, num périplo pelas mais fartas vinhas da Suíça, algo que adiou sine die tão perplexo enlace – prepara-se para, às 23 horas deste último domingo do mês, “estar fino” de forma a iniciar o turno que o prenderá na fábrica GRISEL, do setor da tornearia, até às 6 de madrugada de segunda-feira. A recuperar do mais recente desaire do seu FCP, tem ainda tempo de lançar ao “Amigo”, o gato encontrado um dia encontrado à beira da porta de Lídia – um imprevisto “souvenir” … – os biscoitos que o ajudarão a garantir o estatuto do mais fiel perseguidor de ratos e outros intrusos, vocação que lhe valeu tão aristocrata distinção.

Sónia, a sedutora rebelde, filha única de um dos mais proeminentes empresários da região, comemora o seu vigésimo aniversário na lotada danceteria “AMÓDITA” (réptil das famílias das víboras, que vive ou se enterra na areia) onde o álcool tem a forma e o poder do fogo. Como sempre, bem maquilhada, pejada de roupas de marca e de umas exóticas botas que quase não deixam ver os joelhos, dança de modo excecionalmente perturbador. Possuidora de uma invejável silhueta, sabe o que fazer com o tronco. O “wonderbra” realça uma acidentada fragrância que, não estando ao alcance do nariz de um qualquer sortudo, estará ainda assim próxima dos intentos da mais experimentada imaginação. Sente-se uma rainha, das poucas que se julgam escolhidas para integrarem a restrita prole dos imortais. Repentinamente, o mundo ficou demasiado pequeno e vulgar. Ela é o centro. Nada lhe falta. Seu inusitado ego vive a imensa pujança de quem se julga o máximo.

Entretanto, Frederico chega à fábrica na popular e bem restaurada V5, com aquele rosnar que atiça a memória dos mais saudosistas. A “pequena”, como carinhosamente lhe chama, consome-lhe a totalidade dos tempos livres. É um fanático. Não há sucateiro que não o conheça. Restaura e embeleza, com dedos de veludo, a mais enegrecida ou gasta peça que possa fazer da singular V5 um exemplar provadamente único. Depois de cumprimentar o guarda-noturno, benfiquista que não esquece a última derrota do “Glorioso” em plena Catedral, escuta a óbvia laracha suscitada pela derrota dos portistas. Inicia o trabalho e tudo decorre com a sonora pacatez dos que sabem que o seu dia de trabalho acabará quando for manhã para a esmagadora maioria do povão.

De volta à “AMÓDITA”, a extensa corte de bajuladores e seguidores de Sónia tudo faz para estar à altura das expectativas. Sua subserviência canina e aprovada fluência laudatória, ajuda a dar um toque de forçado mérito a tão dispendiosa futilidade. Não tem namorado, preferindo provocar e confundir um grupo de bonitões que até já se alistaram no Ginásio “Ferro & Aço” por forma a consubstanciaram a sua candidatura ao “acompanhante da semana”. Os pais da aniversariante decidem regressar a casa. Estão cansados. Semelhante parafernália de sons, odores e ritmos não é compatível com as suas rotinadas exigências profissionais. Voltam com o orgulho de terem feito do vigésimo aniversário da sua única filha um acontecimento inolvidável.

No dealbar da madrugada, quando o relógio assinalava que ainda faltariam 45 minutos para as sete horas, o espampanante Mercedes de Sónia, tomada pelos efeitos de uma noite onde reinaram os mais exóticos “shots”, parece desafiar os limites da estrada, desgovernando-se e acabando por colher frontal e mortalmente o condutor de um carismático motociclo, conduzido por um “bom rapaz”, que não deixará filhos nem parentes próximos. À sua espera, desconhecendo o que o futuro lhe reservará, continuará o Amigo, o fiel perseguidor de “intrusos” e conquistador de biscoitos.

Sónia apanhou um susto. O carro não tem concerto, mas o avultado seguro contra todos os riscos restituir-lhe-á o direito a uma viatura de substituição. Os advogados tratarão do resto. Está em repouso. Pra semana, vem um novo Mercedes e já está agendada nova festa para comemorar o pleno restabelecimento da menina que promete, um dia, ser o orgulho dos pais.

 

(*) Texto a lembrar o crescente número de mortes nas estradas portuguesas por negligência, irresponsabilidade e/ou desrespeito pela vida dos outros.)