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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | O último vendedor de Coca-Cola no deserto

02.02.25 | Servido por José Manuel Alho

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Gastão Souza vive e trabalha para fazer figura. Ostentando uma silhueta que não esconde o terno encanto dos quarenta acabadinhos de merecer, não dispensa na sua imperturbável indumentária o recurso a berrantes coletes que, antes de o serem, já o eram na sua desconcertante imaginação. Existem porque os exigiu ao massacrado alfaiate, o pachorrento Toni, que a muito custo os aceitou confecionar com tecidos comprados invariavelmente a retalho na Feira dos Vinte e Oito.

Mais do que uma envelhecida coleção de sapatos impecavelmente engraxados, Gastão ainda se distingue por um farfalhudo bigode cujas pontas tenta insistentemente recuperar esticando-as à espera de melhores voltas, isto é, caracóis. Há pouco mais de um mês, quando se preparava para aderir às vantagens das acendalhas sólidas, preterindo as ancestrais pinhas – abandonou, por opção, a cíclica tendência de as rapar no pinhal mais próximo… – foi surpreendido pelo rápido impacto da inovação ao ponto de ver chamuscadas tão trabalhadas e cuidadas pontas peludas. Quando teve de aparar o bigode, encurtando-o, sentiu-se castrado, quero dizer, diminuído. Todos ainda recordam o dia em que se desdobrou em frases inacabadas para explicar ao Zé da Cueca, o barbeiro da terra, que teria de lhe amputar tão diletos caracóis faciais.
Muitas são as piadas que, em surdina, se contam a propósito de tão ignipotente ocorrência. Foi o único dia em que o compreensivelmente encaramujado Souza não envergou um dos seus exóticos coletes. Está tudo dito.

Casado com a D. Ester, uma mulher deformada pelas exigências da vida e forçosamente sedentarizada pelo papel de esposa dedicada e extremosa a que se entregou com assinalável denodo, Gastão é um vendedor de mercearias que não aparenta viver estrangulado por uma recessão mais exposta que nunca. “Tem lábia”, adianta, em jeito de explicação, o Toni dos coletes. Na verdade, o fluente empresário assume-se, mesmo quando vende mercadoria a roçar o prazo de validade, como o último vendedor de Coca-Cola no deserto. “Comigo, só se fazem bons negócios!”, publicita, exagerado, o derradeiro exemplar de uma espécie em vias de extinção.

Apesar de passear os odores perfumados e recém importados pela loja do chinês agora instalada no bairro, Gastão Souza está longe de ser um santo. Com uma carteira de clientes dispersa pelos concelhos vizinhos, não lhe faltam razões para chegar tarde a casa. Não que tenha secretária e ofícios a ditar depois da hora de expediente. Os seus “assuntos pendentes” esgotam-se em percursos errantes, bem longe de um qualquer balcão de mercearia. Dias há em que, nada tendo vendido, muito fez para desencadear ou consolidar futuros conhecimentos. Tudo, é claro, em nome do negócio. Não sei se me estão a entender…

Não se iludam. Nada nesta personagem é virtualmente espontâneo. As piadas ditas com jocosa dicção; os pensamentos eruditos com que remata conversas inicialmente bacocas; as rimas curtas, mas melodiosas foram bebidos em jornais locais abandonadas nas mais recônditas casas comerciais que abastece pois, hoje, nas últimas páginas, com pensamentos e máximas filosóficas, estarão os brilharetes de amanhã. Decorada a graça, tudo faz para inserir a “bucha” na primeira oportunidade. Nessa perspetiva e à sua maneira, Gastão será um autodidata porque se apropria do conhecimento já existente para o colocar ao serviço das suas conveniências inegavelmente interesseiras. Lá no fundo, é um cromo a que a memória coletiva terá de reservar um lugar de destaque. A sua figura tende a cristalizar-se com o tempo.
Ninguém ousará comparar-se-lhe ou até imitá-lo. Seria um esforço de composição e encenação esgotante, ao alcance de poucos.

Quando tocado pela inveja alheia, o nosso amigo costuma asseverar que “sou um homem realizado”. Sê-lo-á? Talvez. É o protótipo de um homem com qualidades, o espelho de um jovem com potencialidades precocemente coartadas pelas dificuldades da vida e a prova tangível de um ator de eleição. De outro como, como explicar que um indivíduo, fanfarrão e mulherengo, mantenha um casamento que já dura há dezoito anos, que um empresário resista às adversidades conjunturais sem nunca ter conhecido a vergonha de uma dívida por liquidar e que uma personagem tão definida não tenha ainda sofrido a descaracterização que poderia ter aniquilado o último vendedor de Coca-Cola no deserto?!