Uma crónica | Porque ela morreu
Esgotada por uns sapatos que só sabe existirem para casamentos e batizados, muito longe do temperamento descomprometido dos ténis da semana, Celina entra de rompante no quarto da malograda D. Lúcia, pessoa que sempre conheceu por se dizer sua mãe. Mais do que o cheiro da presumível saudade, o quarto, desde os tapetes à mesa-de-cabeceira, indicia carregar o austero peso de um desaparecimento, acentuado pelo incontornável desgaste de um funeral pejado por aqueles aromas que há muito celebram a inevitabilidade da morte.
Por momentos, o silêncio ameaça ser ensurdecedor ao ponto de infligir o fino dano que, nos casos mais ostensivos, se sabe poder ganhar a forma de lágrima que escorre com o subtil encanto de uma recordação irrepetível. Celina martiriza-se porque, simplesmente, ousa não se reconhecer no turbilhão imprevisível dos sentimentos que lhe turvam aquilo que sempre definiu como atributos da lucidez e bom senso. Como que querendo fintar a verdade imposta pelo facto de ser agora uma filha sem mãe, ela aceita enfrentar as contradições de um coração em acérrimo litígio com a razão. Sabe, mas não percebe o que sente.
Liberta da possibilidade de ser contrariada, criticada e satirizada pelas opções mais rotineiras e finalmente inacessível ao desmando estético da progenitora, Celina ousa deitar-se naquela cama para então desferir destemido olhar rumo a um teto amarelecido por dias consecutivos vedado ao sol de uma manhã que se quer apreciada no calor apaziguador de todo e cada um dos seus raios. Impelida pela perplexidade de um padrão ingovernável de pensamentos, que se cruzam nos insondáveis entroncamentos da lógica que emprestou à sua vida, permite-se, sem vergonha ou acanhamento, sentir-se filha de alguém. Em nenhum momento havia ponderado experimentar semelhante sensação de pertença. Afinal, da criatura que lhe disseram ser sua mãe, de cujo ventre havia despertado para a vida, só conhecia a garantia de uma discussão, o hábito de um grito de censura ou a frouxa tarimba de um conselho dado com a rispidez de um lancinante açoite.
Só, no meio de estatuetas sem história, adornos fúteis e retratos dignos dos mais sentidos bocejos, Celina vislumbra-se numa das fotos plantadas na ancestral camilha da família. Não parece perdida naquele chorrilho de imagens.
Era mesmo ela, no dia da sua primeira comunhão. Ainda enleante e inocentemente sedutora, reconhece-se naquele apertar de mão com a que, poucos anos mais tarde, haveria de ter por sua primeira e imprevista opositora.
Sem se deter, opta por abrir, com a expectativa de quem desbrava novo traçado para a mais disputada cachoeira, todas as gavetas do santuário que sempre aprendera a respeitar. Com a delicadeza de quem remexe em tesouro alheio, para mais tarde não ser identificado, a jovem e casadoira pediatra procura, procura sem saber ao certo o que pretende encontrar. Está possuída por uma indomável curiosidade, algo que no passado sempre tolerou por estar no limiar da indiferença.
Por entre livros de autores conservadoramente consensuais e outros adereços de conjuntura, Celina toca num emaranhado de papéis que desdobra com a avisada cautela que acompanha a construção de um gigantesco puzzle. Andou na universidade. Estudou. A linguagem constante naqueles documentos, que logo percebeu serem relatórios clínicos, continha adjetivações técnicas demasiada e inesperadamente graves, que escapavam ainda assim à sua especialidade. Não demorou muito para descobrir que “mui” venerável D. Lúcia havia afinal padecido de doença prolongada e provadamente incurável. Empedernida pelo impacto de uma surpreendente revelação, abre determinada o pequeno baú onde desde sempre supôs recolher-se as riquezas - vulgo joias - da família. Coberto por um inconfundível lenço de seda comprado na última deslocação a Lourdes, depara-se com um bem arrumado arsenal de medicamentos.
Atordoada, sem esboçar qualquer plastia digna do reino dos vivos, vê a sua alucinante odisseia interrompida pelo pai, o bonacheirão António Medeiros. Sem dificuldade, ele não vê necessidade de compor qualquer discurso. Entrega-lhe um envelope com o seu nome estampado. Lá dentro, um texto manuscrito com a caligrafia cuidada da falecida. No início, bem centrado na espessa folha de papel, podia ler-se:
- “Minha querida filha,”
Pai e filha trocam terno e previsível olhar, seguido de forte abraço.
António Medeiros, em jeito de lamento, sentencia “ela sempre gostou de ti. Tinha muito orgulho por seres, finalmente, pediatra, algo que os teus avós nunca lhe permitiram desejar. Recusou contar-te a verdade porque entendia que tamanha notícia poderia afetar a dedicação à profissão que sempre quis ter.”
Sentindo o imperativo de deixar só a filha, dirige-se para a porta e já com a mão na maçaneta, que tantas discussões havia despoletado aquando da sua escolha, sussurra cabisbaixo: “pena que nunca to tenha dito…”
Celina quer chorar. Vai chorar. Na morte, deixara de sentir-se órfã.