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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | Se vieres, bate à minha porta

15.02.25 | Servido por José Manuel Alho

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 “Onde raio estão os comprimidos?!”, inquire o exasperado Felisberto, trémulo e ainda confuso por um amanhecer dolorosamente luminoso. Numa cozinha onde as conservas do atum e das sardinhas sobressaem por entre uma amálgama de embalagens plásticas salpicadas por umas dispersas, mas secas migalhas de boroa, o nosso idoso, rigorosamente a caminho das oito dezenas de vida, busca com os olhos a resposta que a sua cabeça já não é capaz de processar.

Encontrar os comprimidos que o Dr. Arnaldo passou a prescrever logo após o falecimento de Rosa, a companheira que não resistiu às exigências do derradeiro sprint de uma doença que também já ataca “moças novas”, é a saga matinal desta alma solitariamente acutilante. Espartilhado por um corpo em progressiva descaracterização, entrega-se ao vigor de um punhado de boas recordações pontualmente esburacadas por uma memória intermitente. Nunca como agora se viu assaltado pelos lampejos de uma meninice que os putos de hoje não saberiam conceber. Nascido num lar com oito irmãos, cedo aprendeu a esperar pela sua fatia. As maiores e as mais grossas estavam destinadas ao pai e aos dois manos mais velhos, que trabalhavam e garantiam o sustento da casa.

“Ah! Sempre aqui estavam!”, constata orgulhoso quando descobre os comprimidos perto da caneca branca com listas azuis. Senta-se. Com o rosto credor de um escanhoar apurado, aconchega-se esticando as mangas do seu borbotado roupão. De regresso ao passado ainda presente, lembra os dias de festa onde se integrava nos esquadrões que perseguiam as raspas de queijo, um dos petiscos mais ardilosamente procurados pelos petizes camaradas. Na escola, a memória dispensa a nitidez para um sorriso que sanciona a inocência dos tempos em que se enchia uma meia com farrapos para jogar à bola até à exaustão. De quando em vez, lá se jogava ao eixo, mas era o fofo esférico que colhia a unânime preferência do pessoal.

Com o passar dos anos, logrou apreciar os encantos de uma chouriça caseira embrulhada em papel mata-borrão e assada num braseiro sabiamente mantido pelo velhote. Veio o casamento e o nascimento dos três rapazes. Foi testemunha do casamento de dois e participou no funeral do mais velho, colhido mortalmente por um camião quando regressava de uma bem regada farra dominical. Nos bons e nos maus momentos, registou sentimentos em harmonia com os cheiros que cada acontecimento ajudou a cristalizar. Sim, porque a vida é feita de cheiros, de aromas emprestados que celebram a inevitável volatilidade das coisas. Agora, reconhece que lhe vão faltando os aromas. A capacidade para cheirar a vida parece depender do turbilhão de medicamentos que se impuseram como formigas em redor de um açucareiro esquecido.

Os filhos têm vidas difíceis, engolidos pelas dificuldades de um quotidiano crescentemente mecanizado. Acredita que não está esquecido, mas não omite o dia em que pela última vez abriu a porta da sala. “Talvez seja melhor assim”, pensa em jeito de atenuante porque os deméritos da velhice nunca atraíram ninguém. Até as inseparáveis ceroulas com que enfrenta os rigores do Inverno apresentam um amarelecimento suspeito, motivo de uma vergonha que se quer privada.

Não sabe porquê, mas este ano parece ter privilegiado dois interlocutores para preencher os seus prolongados silêncios. A velhice apazigua o espírito e ousa aproximar extremos com a fina ironia de uma chuva de Verão. Bastas vezes dá por si a falar com Deus como se ali estivesse um atento camarada de armas. Outras vezes, entrega-se a um discurso pessimista que define afinal um otimista bem informado. Fala da morte com a Morte. A um e outro, sem azedume ou egoísmo, repete um pedido com direito de resposta assegurado: se vieres, bate à minha porta.