Uma crónica | Simplesmente derradeiro
Mais um amanhecer na “ala dos condenados”, o tal espaço batizado por enfermeiras e restante pessoal auxiliar para reunir aqueles que, ainda vivos, têm ali mais certa a morte que a vida. Gracinda, a “inquilina” que ainda afronta, com assinalável estoicismo, a rigorosa frieza dos prognósticos médicos – que lhe vaticinaram, num misto de otimismo e rara sorte, sessenta dias de vida – é a alma que se segue. Não tem parceiros na mais temida antecâmara da morte. O fino mas certo chiar dos carrinhos que, além da primeira refeição do dia, transporta a desde logo vencida medicação já entrou no quarto desta nossa irmã. Com os sentidos turvos e consumidos pela doença, ela logra ver, ouvir, cheirar e sentir o que a morte ainda não lhe resgatou. Os movimentos rotineiros e os olhares entretanto prostrados daquela gente ironicamente vestida de branco, que sempre respondeu aos seus gracejos de estreante na ala da morte, confirmam-lhe finalmente a inevitabilidade do óbvio.
Gracinda já viveu quatro décadas e meia. Assumidamente católica, não experimentou a bênção de ser mãe – problemas… – a graça de enfim realizar aquele singular feito que testemunhou fazer a felicidade de tanta gente que conhece desde os bancos da primária. Peixoto, o marido, homem porventura burgesso, mas essencialmente bom, é visita diária garantida. Sempre de fugida e com o seu intragável traje de funcionário camarário empoleirado nas viaturas de recolha do lixo, daqueles que não usam máscara, cativa pela timidez com que esgana, sem apelo nem agravo, o verde boné que, apesar de habitualmente enterrado, não chega para lhe esconder as farfalhudas patilhas de sportinguista acrítico.
Arrendaram casa e pensavam fazer uns anexos no próximo Verão. Ele, que reconhecera “não ter cabeça” para fazer o código, não tinha carro. Há dois anos, o solitário casal empenhou-se e comprou uma daquelas viaturas motorizadas de quatro rodas, à base de fibra de vidro, vítimas demasiado previsíveis da impaciência dos condutores encartados. Com a doença da sua “senhora”, o “troiloil”, como decidiram chamar-lhe, não chegou afinal a conhecer os quilómetros de estrada programados. A cassete provocando “a garagem da vizinha”, banda sonora que acompanhava as manhãs de sábado religiosamente reservadas para limpeza dos interiores, nunca mais se ouviu. O pouco que prometia terem por garantido perdeu-se com a amarga certeza de uns grãos de areia escoados entre dedos.
Peixoto não está hoje obrigado a ter pressa. Os colegas de labuta dispensaram-no, exigindo-lhe que passasse o dia junto da sua companheira, a vigilante implacável que nunca lhe poupou um brusco sermão no regresso da taberna do Abílio, após disputadas sessões da mais invejada enologia bairrista. Todos sabem que tudo deverá acabar hoje. Todos sentem que a desprezada “Funerária Antunes & Filhos” terá amanhã novo serviço. Nem chega a ser favor. Apenas pânico de estar no lugar do Peixoto. Eles que se despeçam.
De barba feita, com o cabelo ainda molhado por um banho tomado em respeitosa resignação, o homem do lixo senta-se na cadeira ao lado da única cama ocupada, a penúltima morada terrena de Gracinda. Com os dedos das mãos entrelaçados, com os braços apoiados nas pernas, deixa cair a cabeça. Consegue ainda desviar os olhos em direção ao rosto da cachopa que conquistara em 1997, no bailarico em honra do padroeiro da terra. Sem que possa esboçar um par de frases previsivelmente tolhido pela emoção, vislumbra os agora fechados olhos de Gracinda. Inesperadamente, não parece está a dormir. Tem estampada a perturbante tranquilidade de quem já deixou de estar. Com braço envolvendo o nosso amigo, o enfermeiro-chefe sentencia: “lamento muito.”
Foi só o tempo de sair do quarto. Iniciou-se o ritual formal para a libertação do corpo. Entram aqueles que garantem a utilidade daquela ala. Há que preparar literalmente a cama para os que hão de vir. Sim. “Porque ninguém fica para semente.” - Dispara a tarimbada auxiliar.
Na receção, Peixoto poderá levantar os poucos haveres de Gracinda. Um par de chinelos comprados na loja do chinês, junto ao hospital, umas quantas camisas de dormir e um desgastado terço que tinha pedido quando recebeu a notícia do seu médico de família.