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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | Toco cru pegando fogo

09.03.25 | Servido por José Manuel Alho

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No romper de um novo dia, vislumbram-se os primeiros raios de sol que se emaranham com a neblina fresca da Primavera, a mesma que sanciona as múltiplas provas de vida desta natureza em arrojada mutação.

Jamir é um adolescente previsivelmente inseguro, ostentando uma acne inocentemente comprometedora, das tais que prenunciam a aurora da maioridade.
Há pouco mais de um ano que veio do Brasil. Está definitivamente com os seus pais, naturais deste quase retângulo à beira-mar plantado, mas que, cumprindo um velho plano de vida, optaram por regressar às origens. Do Brasil, ficaram perenes memórias de um trajeto intenso e repleto de expectativas goradas onde, apesar da insegurança e da crescente pobreza, sobressai uma singular herança sob a forma de um legado genético protagonizado por um miúdo sardento, franzino, de cabelo comprido e caprichosamente encaracolado.

Jamir reside agora numa rua tranquila, serenamente vetusta em contraste com a esgotante azáfama da competitiva metrópole que, do outro lado do Atlântico, serviu de palco à primeira etapa da sua paleta de sonhos. Não tem muitos amigos porque conhece pouca gente. Nos seus tempos livres, dispensa a televisão. Não aprecia o jeito formal e tenso dos “caras que falam na TV”. Tem dificuldade em perceber o que se diz. Não porque ouça mal ou tenha um vocabulário limitado. Na verdade, a língua portuguesa apresenta variações que só agora descobriu serem possíveis. Por vergonha, não pede aos seus interlocutores que repitam ou falem pausadamente. A tudo corresponde com um prostrado acenar de cabeça ou com um sempre oportuno “é verdade”. Pouco lhe resta. Refugia-se na web ou busca tácita compreensão num qualquer som “metálico” importado.

O pai aventurou-se em cumprir uma antiga ambição: ser carpinteiro. Desde cedo, manifestou atributos que há muito poderiam ter feito dele um artista de mão cheia. Porque a vida nem sempre projeta um traçado linear, só agora o “senhô” Januário ousa ser o que um dia sonhou para si. Investiu em ferramentas e desafia a estética instalada com um atrevido punhado de inovações que ameaçam surtir efeito entre a vizinhança mais próxima. Quando voltaram, e porque a luz do sol é fundamental ao bem-estar dos três, não tardou muito a cortar quase rente um plátano presumivelmente secular, plantado bem à frente da até então entrevada moradia. Ganharam a preciosa lenha para os rigores de um Inverno que Jamir jamais ousou antecipar nos seus piores pesadelos, mas herdaram um toco de respeito, daqueles de fazer mesmo inveja.

Rapidamente o inusitado toco passou a ser disputado por todos os membros da família. Aliás, é nos tempos a seguir às refeições que todos esgrimem motivos e se travam de razões para auferirem o direito a ali estarem, quais distintos monarcas gozando o prazer de mirar as fronteiras do seu disputado reino. Contudo, Jamir faz daquele toco o altar-mor do seu “armário”, vulgo, momento da vida – usualmente na adolescência – onde o ser humano não faz o que pensa e faz o que nunca pensou.

Num destes fins de tarde, com um pôr-do-sol “bem bacana”, o nosso jovem, tomado por aquela melancolia adolescente a roçar a pura sedução, descobre ao fundo da rua uma jovem de ganga definida, isto é, bem colada às suas ditosas formas.

Confiante na sua pose de rei e apressadamente seguro dos seus méritos, planeia dirigir-lhe a palavra se acaso a enleante plebeia lograr passar em frente ao seu castelo. É o que acontece. Ele digna-se levantar-se e caminha para o portão. Meticuloso, programou os segundos para que o encontro fosse premeditadamente ocasional. Subitamente, constata que a beleza que o empertigou é bem superior, em formosura e encanto, ao que os seus olhos haviam insinuado.
Consumido por uns estranhos calores, que sobem dos pés às raízes dos cabelos, ao ponto de ameaçaram os seus nobres caracóis, com um friozinho no estômago, desfaz-se num suor incontinente. Eis uma bica humana! Tolhido pela imprevista reação do seu corpo, Jamir solta um pedido petulante: “Quer vir sentar no meu toco?”

Ela, mais velha e sabida na mui exigente arte de bem cortejar, desarma-o com o seu sotaque, bem próximo, por sinal, ao seu. Madura e já senhora do seu nariz, responde-lhe com um conselho subliminar: “É melhor não. Sabe, já não seria a primeira vez que veria um toco cru pegando fogo…”