Uma crónica | Um amor assim é maldição ou é obra de Deus
Como diria a canção, parece que o mundo se reunira para o tramar. A ele, o contabilista atinado que monitoriza, com sucesso, as contas de umas quantas empresas da baixa da cidade, tudo parecia alinhado para o enredar na teia do inesperado. Vinha da farmácia onde “já ninguém espera pela sua vez” como se cada um fosse, instigado por um incompreensível estado de alerta, resgatar a derradeira embalagem de cada medicamento. Oliveira, como é conhecido e tratado, sentia o sangue a ferver de indignação. Até na pastelaria onde, por uma questão de elementar cortesia, havia, ao sair, mantido aberta a porta do estabelecimento para uma jovem entrar, constatara que um simples “obrigado” estaria porventura reservado a gente mais importante que ele. Se calhar, fora, pura e simplesmente, confundido com um qualquer porteiro comercial cuja única função é franquear o acesso a todos os potenciais clientes.
Estava determinado a esquecer estes desmandos que confirmam, pressente-o, um mundo socialmente abusador. Empunhando um sonoro conjunto de chaves que garantem a abertura do seu gabinete de contabilidade, já vigorosamente apontado ao canhão da fechadura, sente um cheiro que o remete para lembranças doces, soltas pelo tempo. Algo que não é recente, mas estranhamente próximo.
Roda o pescoço e logra reconhecer uns negros cabelos, brilhando ao sabor de uns quantos raios de sol. Um friozinho no estômago assinala uma reação instintiva que julgara há muito extinta. Um sentido slow motion serve o propósito maior de vislumbrar o vulto responsável por aquele turbilhão incontrolável de emoções.
Na verdade, tratava-se de Catarina, o primeiro e genuíno caso de amor, não correspondido, que alimentara na sua pouco estimulante adolescência.
Até hoje, guarda na sua carteira um discurso escrito, pensado para verbalizar uma incontida declaração de amor. De início, tolhido pela sua inexperiência, inclinou-se então a ter por paixão o que hoje se mantém resistindo aos entroncamentos da vida. Ele, solteiro e à procura do almejado reconhecimento profissional. Ela, com uma aliança insuspeita na mão esquerda, com bom vestir, asseguram os dois um presente longe dos planos gizados por uma alma ingenuamente sonhadora.
Lembra agora, suspenso na surpresa daquele instante, a declaração que não disse quando viu Catarina de mão dada com um tipo bem parecido, mais condizente com a insustentável beleza dela. Na altura, guardara literalmente no bolso o amarrotado papel onde as palavras por dizer não refletiam, ainda assim, o que realmente sentia por aquela encantadora rapariga. Só ele sabe o que poderia ter acontecido naquele final de tarde. Ensaiara, com tiques melodramáticos, os silêncios, as interjeições e calculara inclusivamente os imprevisíveis movimentos de duas mãos suadas pela exigência da ocasião. Mas nada, afinal, acontecera.
Voltando ao imprevisto encontro, cumpre assinalar que ambos se reconheceram. Saudaram-se. Ela, mais efusiva e carinhosa, estendendo a mão à sua cintura num beijo ironicamente perfumado. Por seu turno, o transtornado Oliveira, com uma resposta emocionalmente orientada, procurava racionalizar o impacto do momento.
“Há quanto tempo não nos víamos!!” – dispara ela, para logo constatar que “estás muito bem estimado. O tempo parece que não passou por ti...”
“Não é bem assim... – retorque sem jeito. De seguida, refugia-se num lugar-comum, expedido com singular autenticidade: “a minha sorte foi não me ter casado!”
Catarina encolhe as sobrancelhas como que estranhando o facto. “Não acredito que tenham deixado fugir este bom partido! Sabes, divorciei-me há dois anos e, lá no fundo, percebo agora aqueles que, como tu, preferem estar sozinhos. É outra coisa.” – garante em forma de alívio.
Oliveira parece, mais do que nunca, empedernido. São novidades dadas com a rudeza de jatos de água fria numa manhã de Inverno. Quando se aprestava para ter um rasgo de ousadia, convidando-a para um café, ela remata com um apressado “até um dia destes. Tenho consulta marcada e já estou atrasada...”
De chaves ainda na mão, paralisado no último degrau da escada, com o papel de uma declaração por fazer há anos, ali ficou Oliveira de novo a imaginar uma vida que sempre concebera. Definitivamente, não era paixão o que sempre alimentara.
Aquele sentimento, há tanto tempo exilado no mais profundo das suas entranhas, por culpa de um coração sem amarras, só poderia ser uma de duas coisas: maldição ou obra de Deus.