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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | Uma Vida, Uma Casa, Uma Herança

15.03.25 | Servido por José Manuel Alho

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Nuno recebera uma proposta de trabalho absolutamente irrecusável. Depois de muitos anos a queimar as pestanas na universidade, sentira o doloroso impacto da realidade que cedo se adivinhou adversa. O ingresso na vida ativa, bem longe de corresponder às expectativas de um engenheiro em telecomunicações, reservou traumáticos ensinamentos num ateliê de reparações de computadores. Há sete meses casado com Mariana, o presente era gizado com o fino traço da ilusão, num conluio afinado, mas irracional da ambição com a ingenuidade. A cada plano, em qualquer delírio verbalizado em voz alta, os dois rasgavam horizontes, especulando com o melhor da sua imaginação. Queriam mais da vida.

Mas voltemos à janela profissional entretanto escancarada. Apresentaram a Nuno a possibilidade de ter um cargo por muitos disputado numa operadora de telemóveis, que forçava a mudança para o litoral. Na verdade, uma cidade com grande tradição piscatória. Além de um chorudo ordenado, somava-se um subsídio para despesas de fixação e uma viatura descaracterizada da empresa. Depois de descobrir que havia sido indicado pelo seu orientador de estágio – homem de grande prestígio naquele sector e profundo admirador das excecionais capacidades do antigo aluno – não foi preciso muito tempo para dar uma resposta. O jovem casal disse sim ao desafio. Os dois quiseram entregar-se a uma aventura que os marcaria para toda a vida.

Chegados à cidade de acolhimento, a prioridade foi para a escolha de um novo ninho. Como os incentivos financeiros permitiam opções de qualidade, recorreram aos serviços de uma imobiliária. Numa tarde, tinham conhecido quatro hipóteses de residência. Nenhuma delas lograra arrebatá-los. Já sem grande esperança em convencê-los, a guia jogaria o último trunfo. Uma moradia junto ao mar, usada e por isso já mobilada. Na verdade, a casa parecia uma aguarela saída dos projetos mentais que os dois tinham sonhado. Isolada, cravada numa zona essencialmente verde, com o mar sempre em pano de fundo, onde o enleante zunido das ondas ameaçava o tórrido silêncio do lugar, era a habitação que há muito verdadeiramente desejavam.

Como os bolos apetecidos nunca dispensam uma cereja, o preço de aquisição era surpreendentemente acessível. Tomados pelo assombro da oportunidade, apressaram a formalização do negócio. Uma pechincha. Já se imaginavam a mostrar as divisões do seu novo reduto aos pais, vangloriando-se de terem conseguido materializar um sonho inesperadamente feito realidade.

No dia da mudança, recolheram os longos lençóis brancos que tudo tapavam. Detiveram-se a contemplar o novo palco das suas vidas. Quanto mais viam, mais orgulhosos ficavam. “Olha para estes móveis! Já reparaste como a luz do sol inunda a casa inteira?” – constava Mariana inebriada pelo pasmo de cada instante.

O certo é que a moradia tinha mesmo tudo. Móveis, quadros, tapetes, cerâmicos decorativos, candeeiros de singular bom-gosto, enfim, um lar que parecia feito de encomenda. Até um quarto para bebé parecia ter sido carinhosamente preservado.

Contudo, um estranho sentimento os assaltou logo na primeira noite. E nas seguintes. Sim. E nas seguintes também. O misterioso é que os dois relatavam sentir o mesmo. Uma presença estranha que os acompanhava e observava. Experimentavam uma tristeza incomensurável, uma dor perturbadora, uma súbita e inexplicável vontade de simplesmente saírem dali. Ficaram particularmente angustiados pelo facto de em muitas gavetas terem visto meias de homem, camisas impecavelmente vincadas e outras peças de vestuário feminino concebidas para uma silhueta irrepreensível. Na sala de estar, por exemplo, até molduras propositadamente caídas, mas sem retratos encontraram numa amálgama de objetos reconhecidamente pessoais. Tudo parecia ter e estar no seu lugar.

Contactaram a imobiliária para expor a situação. Do outro lado do telefone, notaram uma indiferença deliberada. Apenas diziam. “Faça o que quiser. Dê ou queime. Isso agora é tudo seu”. A casa era isolada e o lugar quase inabitado. Procuraram alguns populares, mas todos se esquivaram a conversas. Indagar sobre o passado daquela casa era assunto proibido. Acentuou-se o desassossego. Nuno e Mariana retrocediam nas passagens do seu mais recente filme. Casa boa, barata, num local privilegiado merecia ser publicitada pela imobiliária com maior visibilidade em vez de ser relegada para quinta opção.

Embrenhado nos seus pensamentos, o nosso engenheiro em telecomunicações abre ao acaso uma gaveta da requintada secretária. Descobre um CD onde, com tinta de acetato, está escrita a palavra “fotos”. Aberta a pasta, visualiza um casal, na casa dos trinta anos. Ela, de esperanças, beija um marido de olhos cansados. Sucedem-se fotografias como retalhos de uma vida que aparecem encaixados num mosaico colorido de memórias. Nuno imprime algumas imagens e faz uma pequena investigação. Chega a conclusões.

A casa havia sido construída por Eduardo, um empreendedor armador da zona. A pulso, construíra aquilo que muitos já chamavam de império. Deu emprego a muita gente. Estava bem na vida. Casado com Leonor, tinha erguido uma casa que ele próprio desenhara desde a adolescência. Há ano e meio que tinha comprado um iate.

Na primeira viagem, acompanhado pela mulher ostentando seis meses de uma muito desejada gravidez, foi surpreendido por uma tempestade. Não regressaram. A mãe dele ficou sem o seu único filho. O desgosto esgaçou-lhe o coração e sonho de ser avó. Não voltou mais àquela casa de ilusões. Decidiu vendê-la tal qual ficou no último dia.

Nuno e Mariana eram afinal estranhos numa casa sem preço. Escolheram depois um apartamento para viabilizarem o seu projeto de vida. Tiveram sucesso. Vão ser pais dentro em breve. Estão felizes.

Os lugares e as coisas transformam-se em legados quando tocados pela energia humana. Não é por caso que, às vezes, nos sentimos mais em casa ou menos à vontade com alguém. No mais, estamos talhados para fazer a diferença, deixando a nossa marca. Há quem lhe chame herança. E há heranças não se compram nem se vendem…