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O Banquete

A República de Platão é o livro mais conhecido do filósofo grego. Contudo, em "O Banquete", também conhecido como Simpósio, Platão vai discutir as naturezas do amor e da alma.

Uma crónica | Viver assim

08.02.25 | Servido por José Manuel Alho

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Cadáveres. Muitos cadáveres. Um silêncio insuportavelmente doloroso e comprometedor que tem aquele efeito de alhear um jogador de futebol no momento da marcação de uma grande penalidade num estádio lotado. Não ouve nem sente nada. Tudo parece um ruído de fundo, um zunido de uma concha ocasionalmente encontrada na praia. O encarnado do sangue e o negro do fumo abraçam-se na aurora que celebra a destruição, altar maior de um palco onde sobressai uma ensurdecedora amálgama de corpos mutilados. Sucedem-se as imagens como se de um documentário se tratasse. A câmara parece sempre em cima do ombro de alguém…

Joaquim acorda uma vez mais sobressaltado e suado. Corre para a única janela do seu quarto fazendo correr a cortina amarelecida, cúmplice perfeita dos seus temores. Nada se passa. O mundo lá fora aparenta uma tranquilidade fútil mas imperturbável. Abalado pela ausência de surpresas, este nosso ex-combatente no ultramar, que não logrou voltar a ser o que era, deixa-se cair na cama tentado somente pela obrigação de escanhoar o seu enrugado rosto. Rotinas antigas. Tem sido uma semana difícil. Só ontem havia convencido um camarada de armas a recorrer a apoio psicológico. Lá no fundo, continua em missão: ajudar os que, como ele, sobreviveram à guerra.   

Aliás, de tanto ajudar, esqueceu-se de olhar por e para si. Continua a adormecer muito tarde. Dorme muito pouco e não suporta qualquer tipo de odores ao ponto de ter protagonizado vigorosas discussões com a sua (ex)mulher, que apenas se esforçava por manter a higiene e a limpeza dentro de quatro paredes. O sofrimento que viu, infligiu e sentiu obrigou-o a habituar-se ao cheiro da morte. Agora, com instinto ou por reflexo, tudo faz para não voltar a experimentar semelhante violência, que em tempos lhe rasgou o coração.

Um casamento com mais de vinte anos desfez-se com a naturalidade de grãos de areia escoados entre dedos. Com a filha única mantém um relacionamento que se limita ao óbvio e ao indispensável. A sua dificuldade em fazer-se entender e sentir torna-o um ser presumivelmente frio e distante.
Estranha ironia esta que colhe, ao limite do espartilho, alguém que enfrentou tantos e tão intensos sentimentos que só uma guerra ensina a valorizar concludentemente.

Joaquim mantém-se um militar em constante estado de alerta. Uma prontidão que impressiona. Parece ainda programado para, em qualquer momento, entrar em ação onde quer que seja necessário. Indivíduo de fortes e vincados posicionamentos políticos, é pontualmente traído por reações que só entendem em situação de guerra. Carrega aquela arrogância de quem ainda pensa ser um combatente. Persiste em ser um animal de hábitos. Ele sabe que fez um juramento para vida. Tudo o resto foi relegado para um plano menor.

Atordoado pelo bulício de uma realidade apesar de tudo mais pacífica, apresta-se para fingir-se como os outros, um tipo bem na vida, amigo do seu amigo e cioso das suas obrigações. O pior, para ele e para os outros – começando pelo carteiro – é que decidiu colocar-se numa posição de quem pode exigir admiração e reclamar-se credor de uma impagável dívida de gratidão, que a sociedade jamais saberá honrar com justiça pois estará longe de imaginar os altos serviços por ele prestados à coletividade que hoje se passeia na calçada com assinalável, mas custoso à vontade.

Sem se aperceber, este soldado, porventura emérito, zangou-se com este mundo e perdeu a noção das perdas que a vida pós-guerra lhe provocou. Mais do que danos colaterais, que também não fez por minorar, o trauma de uma juventude consumida em penosa tensão, com parcas perspetivas de futuro, reservou-lhe o amargo sortilégio de agora ter de viver assim.